A base das loucuras, interesses
ou obsessões pessoais raramente interessa a alguém. É difícil fazer esse
raciocínio numa lógica onde talvez nos achemos aceites, porque nos lança sempre
perguntas complicadas e dificuldades de posicionamento. Aquele tremor
fantástico pela vivência das idiossincrasias, aquela busca pelas coisas que nos
fazem reencontrar aquilo que talvez seja o mais próximo que temos de uma
definição de propósito para uma personalidade é, a mais das vezes, quando
falamos das sua profundidades e densidade mais expressivas, anódino. E essa
noção chateia (acho eu, a mim entristece-me um pouco) porque encerra não só um
elemento de solidão muito claro, como dá aquela imprecisão acerca daquilo que
nos identifica como identidade real perante os outros, especialmente aqueles
que gostam de nós e de quem gostamos. Ao desconhecer a motivação das
idiossincrasias, e já nem vou falar em partilhá-las, desconhecem-se as pedras
basilares que depois se ramifica em corredores e corredores do edifício da
personalidade. E o mais complicado é que não há grande forma de o explicar,
porque requer um movimento empático, ou uma partilha quase involuntária. Quando
estamos perante aquilo que nos constrói e faz reencontrar um pouco com o mundo
e nos auto-justifica perante ele, o desejo de universalização é em si uma
dádiva. “Estou aqui e eu (também) sou isto. Pega e faz o que quiseres, mas
consegues ver? Ou consegues ver porquê? Ou queres ver?” Estas são ideias e a
verbalização dos pedidos surdos que acredito que muita gente faça, mais ou
menos orquestrados em defesas elaboradas da vulnerabilidade, mas que são
efectivamente as pistas para pelo menos parte das preciosidades únicas de cada
um.
Claro que, e aqui já sei que
talvez chateie algumas pessoas, tem de haver algo que se materialize. Estamos a
falar de gostos, manias, perspectivas, rituais que têm uma fortíssima explicação
genesíaca, e que nos desenham na folha de papel branco onde todos aterramos. Ao
longo do tempo vão-se acrescentando as sombras, a ilusão do volume e
substância. Alguns dos traços que geram a primeira sombra são repetidos vezes
sem conta ao longo da vida, criando uma perspectiva na qual as barreiras
subjectivas da solidão que cada um reconhece para si pedem para ser desmontadas,
expostas, e sobretudo, enquadradas num acolhimento.
Mas em muitos casos isto é visto
como puerilidade. É uma espécie de herança pateta dos dias em que a vida não
era supostamente real, mas uma escada de acesso aos dias do necessário, do
contundente, do pragmático. Algumas pessoas temem partilhar ou assumir qualquer
coisa de original, ou uma busca qualquer que não tenha a ver com conceitos mais
ou menos fáceis de explanar numa simples conversa rápida e concisa, porque a recondução
ao necessário é feita com aquele ar professoral de quem “sabe o que é a vida”.
Claro que depois, muitas vezes, os consultórios psíquicos enchem-se de pessoas
que já nem sabem quem são, e que mesmo rodeadas de gente não conseguem
partilhar nada de significativo, porque desaparece o que partilhar. Não há
massa crítica, as originalidades que fizeram o contorno errático e único da
pessoa reorganizam-se numa espécie de complexo de linhas e ângulos rectos,
tornando-se, infelizmente, em algo normalizado, com medidas padronizadas.
A verdade é que o conhecimento profundo,
ou o mais profundo possível, assenta em dois vectores, que se sucedem. A partilha
empática dessas tais irregularidades profundas, e a sorte em reconhecer que essa
partilha advém de uma vontade similar e não de um ajustamento quase genérico. Acredito
firmemente que a razão maior para que muitas pessoas não consigam dizer que
conhecem realmente outras ou pelas quais as amizades a toda a prova raramente
se verificam, assenta num desconhecimento por desinteresse. As excentricidades,
as unicidades, a mecânica das paixões, o esforço criativo, a originalidade,
caem para um plano onde tem de haver uma cedência em meu ver bem maior do que
seria desejável, até que seja uma espécie de conferência entre cantões suíços
ou o clube do politicamente correcto. A neutralidade passa a ser confundida com
respeito, e rapidamente tudo são coisas parecidas com as cimeiras europeias, em
que se aflora muito à superfície, mas não se resolve coisa alguma.
No fundo, saber o que é
importante e saber gerir essa importância como a fluidez de vontades pelo menos
parcialmente partilhadas, é a sorte da empatia. A construção empática permite a
partilha de paixões, porque as buscas são similares, ainda que não pelas mesmas
coisas. As pessoas que sentem que estão a chegar a qualquer lado relativamente
a alguém, são aquelas que sabem e pelo menos em parte conseguem embarcar na
viagem de interesse, nem que seja pelo gozo de ver algo novo, de arriscar uma
visão de um posicionamento que não tinham. A empatia entre as pessoas nasce do
esforço consciente da materialidade, de fazer algo a partir do nada, de mexer o
ar quando não há vento, de perguntar se aquela pincelada foi pensada, um o
artista estava a sacudir uma mosca e torceu o pulso em cima da tela, se a
excentricidade não é senão uma forma de aprofundar as mais apaixonantes e
complicadas perguntas sobre algo tão efémero mas tao único como uma vida, uma
personalidade e uma história.
É terrível sentir que a viagem
idiossincrática é um navio quase despovoado, e é bem pior quando é olhado como
uma nau de loucos. É, em meu ver, a
razão para muita da solidão e mudez daquela parte de cada um que sustenta todas
as formas de solidão quando elas surgem. É que é preciso não esquecer que lá
que nasce tudo quanto torna únicas as histórias muito parecidas, mas que se
tornam únicas, pelo simples facto de serem nossas. E o nosso amor não é exactamente
o amor dos outros, o nosso afecto não é exactamente o afecto dos outros, as nossas paixões não
são exactamente as paixões dos outros. Mas se não quisermos realmente saber o
que significa o “não exactamente”, isso também não interessa nada. E nós
acabamos por pouco ou nada interessar, como pouco interessa aquilo que não faz
diferença alguma.
E a ser assim, é complicado. E um
pouco triste, não é?
Acho eu…
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