Há uma frase do Principezinho,
que, como a máxima latina de que John Keating repetiu algumas vezes num filme
saudoso, se tornou uma espécie de recorrência conceptual e em alguns casos
substitutiva de uma arguição alternativa da mesma ideia por palavras próprias. Pior ainda eu ser repisada até à exaustão, é
a sua, em meu ver, incorrecta aplicação, que radica, em muitos casos, numa
tentativa que as pessoas têm de passar a culpa dos seus males de amor para o
objecto do seu desejo. Ainda por cima porque se descontextualiza, muitas vezes,
o objectivo da frase na própria obra, aproveitando-a para uma espécie de “partiu”
pagou, quando o responsável pela destruição das porcelanas é aquele que faz a
acusação.
Diz a frase que “Tu tornas-te eternamente responsável
por aquilo que cativas.”
E é normalmente aqui que os
disparates começam.
Em primeiro lugar ninguém é
responsável por cativar outra pessoa, a não ser que esse interesse tenha sido
despertado à custa de ilusões e mentiras muito bem colocadas para criar um
quadro de intenções que depois não tem qualquer intenção prática. Se as pessoas
mentem para criar uma espécie de aplicabilidade empática absoluta com um outro
ou outra caramela, então aí sim, há uma responsabilidade, porque as pessoas,
sem conhecimento de causa, passaram a perseguir algo que lhes era facultado, mas
que na verdade não existia. Mas é um disparate imenso achar-se que alguém é (objectivamente?)
responsável pelo facto de outras pessoas a acharem cativante, ou gostarem dela,
ou a quererem como objecto de desejo e entrega afectiva, só porque tratam bem
outra pessoa, ou até podem mesmo ter outra coisa para oferecer, mas que não corresponde
exactamente ao que o “cativado” pretende.
Tirando adolescentes, cujas
hormonas andam demasiadamente misturadas com as celulazinhas cinzentas, as
pessoas têm de ler as coisas como elas são, e não como gostariam que fosse, ou
pior, como acham que cedo ou tarde conseguirão que elas venham a ser. Há uma
dissimulação ilegítima quando a pessoa que é cativada acha que ao sê-lo, só o
poderia ser com base nos seus objectivos, gostos e preferências, achando que o
outro só o fez de acordo com esse arquétipo, e que qualquer desvio significa um
engano. Errado! Engano está na preferência pela manutenção da busca pelo
objectivo, ignorando a informação que se possui, e chegando a crer para além da
vontade do cativante.
Ninguém é responsável por nada
que não possa dar, e acho até mesmo aviltante que se possa acusar as pessoas de
serem imprudentes quando nada no seu comportamento levou a que as coisas
pudessem ser interpretadas de outra forma senão aquela que configura a
disponibilidade afectiva e pessoal que de facto têm ou estão dispostas a dar. Quanto
muito as pessoas têm, aí sim, o dever de avisar que entre as intenções do
cativado e do cativante, há diferenças, e que elas devem ser claras para que
algo possa ou não acontecer. Mas depois disso estar bem definido, “all bets are
off”, e cada pessoa corre os seus riscos, sabendo desde logo como é que a coisa
funciona.
Eu bem sei que é tentador passar
a batata quente da culpa e da dor afectiva para alguém, especialmente se esse
alguém afinal puder assumir o papel do manipulador/cativador dissimulado e
predatório. Ganha-se como que uma espécie de auto-convencimento de autoridade moral,
através da qual aquilo que foi oferecido, mas que não podia ser usufruído pelo
cativante da forma desejada pelo cativado, surge como injustamente repudiado
porque o cativante “deveria ter tido cuidado”. Daí ao bandalho ou à rameira
imprestável é um passo, e afinal o cativado não perdeu nada porque a pessoa em
causa nem sequer valia a pena e bla bla bla…
Além disto ser um disparate
semelhante ao pior da literatura de auto-ajuda, é injusto, e até algo
insidioso, porque se baseia num conhecimento que já se tinha, mas que teria de
ser necessariamente diferente só porque o cativado assim o desejava. E como me
parece claro, as pessoas só darão aquilo que podem dar, e desde que isso esteja
esclarecido, o jogo da afectividade, em todas as suas vertentes, é um risco. Depois
de avisados, só lá vai quem quer. E sabe ao que vai. Achar que quem simplesmente
se limitou a dizer as coisas como eram, e a viver as situações de acordo com
isso, é descuidado, é quase como dizer que a reciprocidade é obrigatória, o que
granjeia altas posições no ranking da tontice.
Assim como é claro que os
cativantes não devem jogar com falsas premissas baseadas em coisas que não
pretendem fazer ou não conseguem sentir, os cativados não têm qualquer razão
para achar-se devedores de uma qualquer espécie de cuidado acrescido quando
sabiam exactamente ao que iam, e o fizeram de livre vontade e ainda por cima
com uma agenda bem definida.
Portanto, ninguém é responsável
pelo que cativa, desde que o faça com a transparência e generosidade de quem é
e do que lhe é possível. Se não forem contadas histórias, as relações, sejam
elas de que espécies forem, são possíveis, até mesmo em desequilíbrios afectivos,
desde que haja uma assumpção clara do que se passa e as pessoas não construam
nada com base em premissas enganosas.
Ninguém é culpado, ainda que possa
ser eventualmente responsável, por inspirar um desejo, criar uma afeição, ser a
perfeita personagem na melhor das histórias, somente por ser quem é. E há até
quem avise bem quais os riscos, uma e outra e outra vez. Desde que saiba isso,
o cativado passou a responsabilidade, e eventual culpa da frustração dos seus
objectivos, para si. Passar a responsabilidade para quem cativou é uma forma de
desresponsabilização que pode parecer prática, mas parece-me quase uma espécie
de “calimerização” que dificilmente convence quem olha para as coisas com o mínimo
de respeito pelos factos. Acerca disto, recomendo o visionamento do fantástico “500
Dias de Verão” e como, lamentavelmente, tantas vezes as pessoas vêm para além de si
mesmas e do que realmente as coisas são…
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