terça-feira, 3 de julho de 2012



A identificação da racionalidade como distanciamento é um raciocínio falacioso.
Em muitos casos, permite construir a valoração dos sujeitos, dos eventos, das situações, e acima de tudo, ensina o valor do respeito pelos outros e por aquilo que eles têm ou o necessitam de ser.
Ensina a permitir a inversão dos raciocínios e a calçar outros sapatos, além de solidificar o respeito pelos nossos.
É po...r isso que a educação e o respeito só devem ser negados na mais extrema das circunstâncias, mesmo perante a mais complicada das pessoas ou situações. Porque, no fundo, estamos também e sempre a fazê-lo por nós, e em respeito ao que, pelo menos, gostaríamos de ser.

"I wanted you to see what real courage is, instead of getting the idea that courage is a man with a gun in his hand. It's when you know you're licked before you begin but you begin anyway and you see it through no matter what. You rarely win, but sometimes you do."
Harper Lee - To Kill a Mockingbird


segunda-feira, 2 de julho de 2012


Há instantes na vida que definem uma série de coisas. São despertadores. São, pela sua simples qualidade factual, demonstrativas de uma realidade que entra pelos olhos e entendimento, e não deixa margem para interpretações mais criativas. São instantes contundentes porque estão lá. São as sintomatologias da herança pessoal, da marca nos outros, da importância que algo em nós assume enquanto factor inultrapassável. Aquilo que somos, ou não, capazes de representar seja para quem for.

Em meu ver existem duas formas de representar este fenómeno. Ou se quiser ser mais exacto, existem dois destinatários para as relações causa-efeito subjacentes à realidade que surge em certos momentos. Essa realidade é tão imensa que permite apenas juízos mais absolutos. Pelo menos internamente, o que leva às tais duas opções de análise do fenómeno, mas já lá vamos. Antes a ideia é bem clara. Estou, ou estive lá, e percebi. Acho que todos percebemos numa altura assim, um certo preço de sermos quem somos, e o que vale todas as tentativas de fazer o melhor que podemos com esse lastro em cima. é possível ver tudo com uma luz analítica, mais ou menos explicativa, tudo pleno, como uma fonte que jorra entendimento e sentido como água cristalina. Sei dos porquês, e sei que até fazem sentido. Sei da pretensa justiça ou falta dela, oriunda das conclusões que um senso de valor arrasado pode ou não tirar. E é precisamente aí que entram as duas opções, as duas representações conclusivas possíveis, os dois olhares face aos factos, as duas interpretações face ao que resulta daquilo que somos, muitas vezes independentemente daquilo que fazemos. E custa o diabo. É, não raras vezes, uma grande merda. É abrangente, é simples, e é terrivelmente solitária. Quando apagamos a luz, é só o que lá está. Num movimento circular pleno de repetições das ideias, das imagens, das repercussões daquilo que afinal é a materialidade daquilo de onde vim, de onde vimos todos, e aquilo no qual isso se demonstra. Ou não, no caso.

 Uma das interpretações possíveis, é olhar para fora e assacar uma responsabilidade ao exterior. É achar que, de alguma forma, aquilo que leva a certas conclusões assenta numa espécie de desencaixe do qual não se é responsável. São os outros, são as outras desadequações, são as faltas ou más vontades. Uma possibilidade é achar que algumas coisas são afrontas ou desconsiderações alheias, às quais um senso de auto-valor ou qualidade permite desmontar como latidos à passagem das caravanas. Há algo neste raciocínio que apresenta pontos positivos. A validação do eu, a protecção da identidade e do núcleo afectivo e emocional. Há toda uma industria nos dias que correm, feita de psicólogos e livros de auto-ajuda, de um discurso de valorização cheio de slogans chamativos, com coaching e quejandos, que assenta nesta defesa da qualidade da pessoa, na protecção do tal núcleo, da qualidade do indivíduo, das suas capacidades e feitos e por aí fora. Claro que poderia apontar umas quantas coisas a esta forma de reacção, até porque acho que há uma ou duas contradições enormes em toda a metodologia, mas isso seria eu a ser eu a ser parcial. Há quem se sinta muito bem com essas premissas, que ache que elas funcionam, que se repetirem muitas vezes uma coisa ela passa a ser verdade... bem, adiante. No fundo há aqui uma ponta de inveja. Deve ser bom conseguir de alguma forma encontrar uma luz em todos os recantos aparentemente escuros dos quais uma pessoa é feita. Deve ser bom ser capaz de encontrar enquadramentos internos para tudo quando suscita dúvidas, inseguranças, monstros nos armários e sulcos nas paredes da estrutura. Deve ser muito bom explicar que algumas coisas acontecem por falha interpretativa e genericamente alheia e não pelo desconjuntamento do objecto de análise, por aquilo que ele, por muito que tente, talvez não seja simplesmente capaz de lograr junto de tudo quando o rodeia.

O que leva à segunda interpretação. Perante a contundência recorrente de uma série de fenómenos, uma panóplia de conclusões, há quem acredite em coincidências, e há quem prefira analisar a estrutura essencial do foco dos tais fenómenos. Eu prefiro remoer à exaustão aquilo que parece mais provável, ainda que não seja exactamente o mais meigo ou mais recomendável para a estrutura pessoal. Eu prefiro encontrar o elemento de constância, o denominador comum, e começar a fazer perguntas. Muitas perguntas. Bem sei que nessa panóplia de questões, muitas não serão boas. Sei que o ideal em muitas situações, é talvez desligar a máquina, não pensar, não tentar coçar a pele até que ela sangre, só para saber afinal que era pele. Sei uma carrada dessas coisas. Mas também sei que os fenómenos muito raramente escapam a qualquer âmbito analítico, por mais complicado ou esticado que seja. Porque esses fenómenos acontecem. Acontecem-nos. E por muito que gostasse de achar que, lá está, a virtude está algures entre a coincidência e a lógica caótica (sim, o oxímoro é propositado) do que é a vida de cada um, a constância de alguns fenómenos, a sua importância nos instantes em que surgem, impedem (me) de tais veleidades. Quando estamos demasiadas vezes em cenários onde coisas boas ou más acontecem, a coincidência começa a ser descartável, como um papel escrito a sumo de limão cujo calor começa a revelar o que realmente lá está. E a verdade é que olhando para uma série de situações que ao longo dos anos teimaram em suceder, em instantes perfeitamente colocados em pressupostos que potenciaram os seus impactos para a estratosfera pessoal onde a maluqueira, os medos e as dores todas pairam, algumas conclusões são impossíveis de não retirar. Não são lá muito fáceis, e estruturam-se essencialmente em perguntas, mas estão lá. Como certos instantes, e as realidades que demonstraram, por mais explicativas que possam ser as suas causas ou formatos.

Este não é um processo fácil. A chuva de castanhada interna é complicadíssima, e as reflexões são intermináveis. Enfileira-se tudo como uma espécie de enunciado imenso, complicado, mas claramente traçável. Nuns pontos os cálculos fazem-se, noutros ficam apenas as premissas. Mas estão lá os factos. Estão lá as coisas que não aconteceram, as coisas que não se logrou, o que não se conseguiu transmitir, explicar ou mostrar.

Há uma certa paradoxalidade, uma espécie de paz com dentes, quando se vira toda esta análise para um foco interno. Por um lado é bom não identificar, pelo menos na esmagadora maioria, responsabilidades alheias, porque se assim fosse, se tivesse caravana para passar incólume ao ladrar dos piruças, o que se faz a seguir? As acções para algo tão instintivo como passar ao lado da relevância do tanto que acontece são um pouco como tentar apanhar água de um regato com um guardanapo. A intenção está lá, e os movimentos até podem ser certos, mas perante tanto antagonismo de substância, os resultados falam por si.

 Não.

Não mesmo.

Sinceramente, acho que perante tantas repetições, tantas oscilações de realidade quase sempre para o mesmo lado, há que analisar o elemento comum. Despi-lo, aplicar-lhe tantas agulhas quantas sejam necessárias, e ver que tipo de animal ali está. Ir ao básico, através dos efeitos dos fenómenos que (não) se causa, dos feitos que não se logra, comparar com o que pretensamente se faz, e concluir pelo que (não) se é (capaz). De ser, e não de fazer, atenção.

É uma coisa terrível virar uma luz negra internamente, mas a verdade é que ela é capaz de salientar cada grãozinho de pó impuro invisível à luz tradicional. Já muitos teremos visto isso numa discoteca. Mostra os contornos daquilo que nos povoa até invisivelmente, e permite saber o porquê de certas realidades, e talvez dar uma de duas oportunidades. Aliás, três.

- Conseguir passar algo de encanto através de alguma coisa, assim como está, ao longo dos tempos, das pessoas, das realidades, das personificações e acções.

- Aceitar a constância daquilo que pode interessar mas não faz a crucial diferença, porque como se sabe, o diabo está nos pormenores...

- Cauterizar para deixar crescer uma outra pele mais lisa, livre das imperfeições que se pode perder, sem que a pele seja destruída com a limpeza.

 Há alturas em que percebo que a realidade dos factos, aquilo que lá está, que se vê, que não se vê, que fecha portas, que impede a troca sincera seja lá do que for seja com quem for, aparece e fica. É o elefante na sala, a dieta que infelizmente, por mais que se quisesse, está à vista que não resulta, a explicação completamente conveniente e lógica, mas que mesmo assim não explica, o salto que fica a um mísero mas talvez intransponível centímetro do ramo da árvore. É talvez muito difícil, mas talvez não seja dramático. É doloroso, mas talvez não estropie. Gasta, mas talvez não termine. Corta ramos mas talvez deixe a árvore viva. Não há que olhar para o lado. Não há que culpar o cão pelo desaparecimento do trabalho de casa. Talvez toda a gente saiba mesmo o que faz, fez, ou aquilo pelo qual é responsável, ainda que talvez não culpado.

Quando o raio cai demasiadas vezes na mesma circunstância, provavelmente alguém se abrigou debaixo de uma árvore ou abriu um guarda-chuva sem lona. E fê-lo várias vezes. Ou só sabe fazer isso. Ou tem perguntas complicadas a fazer. Perante o discorrer de uma história, esse é o meu primeiro reflexo. As penas oriundas das coisas que não acontecem ou acontecem de forma dolorosa ou negativa é um pouco como deparar com a estimativa do gasto de electricidade. O primeiro instinto é pensar se deixamos a televisão acesa demasiadas vezes, o computador a fazer downloads toda a noite, o frigorífico demasiado intenso quando só há um pacote de leite fora de prazo lá dentro, o aquecedor ligado para criar um ambiente em casa que não pareça algo saído da Marcha dos Pinguins quando chega Dezembro.

E talvez não esteja muito enganado se o culpado estiver mesmo ali ao espelho... quase sempre.


segunda-feira, 18 de junho de 2012

Talvez das melhores capas de sempre, num álbum fantástico, tocado em partes, como esta, num concerto muito, mas muito bom...


terça-feira, 12 de junho de 2012

Há anos lia uma entrevista feita a uma jornalista, que lamentavelmente já não me recordo quem é, e ela dizia que a ideia de que pudesse fazer algo que irritasse ou magoasse, ou algo genericamente fazer algo mal ou de mal a alguém, deixava-a doida. Não porque achasse que era perfeita, mas porque dava voltas e voltas à cabeça à procura da génese para tal réproba. Se a conseguisse identificar, pode ser que estivesse ao seu alcance, caso visse e entendese o mérito contido na tal declaração de demérito. No fundo, havia uma incapacidade para a arrogância ou a confiança sem beliscões, e uma genuína vontade de misturar a evolução com o desejo de tentar pelo menos não fazer mal a ninguém.



Aquele raciocínio era-me tão familiar que durante muitos anos, e mesmo nos dias que correm, tenho de dizê-lo, que intencionalmente me esqueci ou ignorei a parte final ou a conclusão daquela premissa na entrevista. Era um juízo que provavelmente seria acertado, mas não me interessava. O que me interessa(va) era a primeira parte da construção. As buscas pelo porquê e a depuração das lógicas e da mecânica comportamental e relacional até chegar ao âmago e fazer uma de duas coisas. Tentar alterar, ou fazer uma espécie de aceitação sob dor e protesto. Noutras palavras, um tijolo de auto-depreciação, mas assumido como uma marca na pele pela qual não somos exacta ou totalmente responsáveis. Fica uma espécie de desejo de poder ser melhor, e de alguma forma, esperar que essas imperfeições feias não
façam mal a ninguém. Ou façam o pior possível.
Com o passar do tempo, descobri que a assumpção de uma identidade é das coisas mais complicadas que existem. Notícias velhas, como diriam, mas a verdade é que a ingenuidade leva a que se espere que sejamos capazes, pelos nossos elementos construtivos, em parte feitos de nada mais que afecto e boa vontade pura (seja lá o que isso for), ou até mesmo um certo desejo de ordem, de elevar os nossos positivos e de alguma forma colmatar as tais cicatrizes que esperamos conseguir manter "escondidas". Eu sei que sou assim. Tenho fases em que isso não me passa pela cabeça, mas tenho outras em que a espiral quse dá comigo em doido, porque às questões sobre as minhas incapacidades juntam-se outras, e outras e outras, e começo a ensurdecer. E se ensurdeço, não consigo falar, e se não consigo falar lá se vão as minhas capacidades para defender as tais coisas positivas, o meu lado construtivo, aquilo que posso realmente fazer, oferecer, ser capaz.

Mesmo perante pessoas que sabemos que não gostam de nós, ou que gostam mas para quem parece que não temos (a maior parte das) respostas, as perguntas surgem, se bem que no primeiro caso é dirigido para dentro, o segundo caso é holístico.



Bem sei que andam por aí essas ondas de new-age, de auto-ajuda ou o que diabo lhe quiserem chamar, onde as pessoas assumem posturas de "não quero saber" e "quero mais é que te f.... com as tuas opiniões", e "sou fantástico e só tu é que não sabes" e outras pérolas. Mas tenho sérias dúvidas que as perguntas não andem no ar, que não sejam uma espécie de aura persistente, que não levem a que seja por vezes tão complicado assumir algum triunfo quando a miríade de inadequações é tão evidente ou pelo menos aclamada como tal.


É terrível sentir que há pessoas que realmente acham que devemos ter vergonha ou pedir desculpa por algumas coisas que são feitas por respeito à identidade própria, mas também com a consciência de que se quer bem e fazer melhor. É terrível pensar que o exosesqueleto das ideias feitas assenta numa premissa de exclusão ou condescendência, porque pensamentos para além das linhas rectas são afinal apenas danos numa engrenagem que embora muito do politicamente correcto aceite, nos sussurros não passam sem recriminação ou pior ainda, troça.



Na parte final da entrevista, a jornalista disse então que embora tenha levado um bom tempo a percebê-lo, acabou por aceitar que por mais que se esforçasse, alguém iria sempre não gostar, ou não aceitar, por motivos que por vezes não passavam de meras afectações sem argumentação. E que aprendeu a ter uma espécie de código de exigência para que, na maioria das coisas, agisse e fizesse o que fazia sem que automaticamente pudesse considerar que tinha sido gratuito, preguiçoso ou maldoso, pelo menos com intenção.



A razão pela qual a parte final da entrevista só me surge intermitentemente, é auto-explicativa. Por vezes consigo fazê-lo, outras vezes não. Por vezes não aceito as agressões ou criticas que considero injustas, muitas vezes levo-as ao impensável para pensar se não haverá razão nas arguições. E não raras vezes fica o receio de que todo o empenho na defesa de algo que é meu, possa ser apenas uma coisa que não tem sustentação. E ao contrário do que tanto se propala, a idade e a experiência não arredam a insegurança da auto-identificação. Simplesmente tornam-na mais refinada e elegante nas suas manifestações. Aprendemos também a rir-nos delas, quando a depreciação corre o risco de se tornar venenosa para a integralidade do sistema.



A verdade é que eu, e acredito que algumas outras pessoas, andam há muito tempo a pedir desculpa por quem são e outras a fazer justamente o oposto. Há um emparelhamento estranho entre quem não tem muitas respostas e quem não acha que tem qualquer pergunta. Uns de menos, outros demais, e vice-versa, dependendo de que planalto se analisa o carreiro lá em baixo. Mas depois uma pessoa chateia-se. Analisa a forma como pensa e tenciona fazer, sentir ou operacionalizar as coisas e não vê nenhum desejo de fazer mal e enfurece-se. Começa a aceitar aquele brocardo velho no qual se diz que então mais vale ser aquilo que se parece, incrementando a máxima de Sócrates (o grego, ok? nada de confusões). é que se o mal estar, a dúvida e a auto-análise agressiva podem não ser completamente debeláveis, ao menos a culpa vai às urtigas. A boa vontade mantém-se, até se reforça, mas finalmente também mostra os dentes ao negar qualquer necessidade de exculpação.

Temos muita pena, diz-se então.
Temos muito de bom pelo menos para partilhar e não aceitamos a pintura de tanto de mau por quem não sabe desenhar um círculo sequer.

Arrancamo-lo e damo-lo como está.
Há mais mundos e até podem ser tão bons ou melhores.
É por isso estúpido e injusto pedir desculpa pelo desenho de uma órbita de um planeta.
Talvez esteja na hora de desenhar mais um sol na pele...



"He came back one day and
told me stories that I
now dream of
….
open atmosphere 
take me anywhere
take me there.”

Fever Ray - Coconut


sexta-feira, 8 de junho de 2012

É NOSSO, ERGO INTERESSA(????)


A base das loucuras, interesses ou obsessões pessoais raramente interessa a alguém. É difícil fazer esse raciocínio numa lógica onde talvez nos achemos aceites, porque nos lança sempre perguntas complicadas e dificuldades de posicionamento. Aquele tremor fantástico pela vivência das idiossincrasias, aquela busca pelas coisas que nos fazem reencontrar aquilo que talvez seja o mais próximo que temos de uma definição de propósito para uma personalidade é, a mais das vezes, quando falamos das sua profundidades e densidade mais expressivas, anódino. E essa noção chateia (acho eu, a mim entristece-me um pouco) porque encerra não só um elemento de solidão muito claro, como dá aquela imprecisão acerca daquilo que nos identifica como identidade real perante os outros, especialmente aqueles que gostam de nós e de quem gostamos. Ao desconhecer a motivação das idiossincrasias, e já nem vou falar em partilhá-las, desconhecem-se as pedras basilares que depois se ramifica em corredores e corredores do edifício da personalidade. E o mais complicado é que não há grande forma de o explicar, porque requer um movimento empático, ou uma partilha quase involuntária. Quando estamos perante aquilo que nos constrói e faz reencontrar um pouco com o mundo e nos auto-justifica perante ele, o desejo de universalização é em si uma dádiva. “Estou aqui e eu (também) sou isto. Pega e faz o que quiseres, mas consegues ver? Ou consegues ver porquê? Ou queres ver?” Estas são ideias e a verbalização dos pedidos surdos que acredito que muita gente faça, mais ou menos orquestrados em defesas elaboradas da vulnerabilidade, mas que são efectivamente as pistas para pelo menos parte das preciosidades únicas de cada um.


Claro que, e aqui já sei que talvez chateie algumas pessoas, tem de haver algo que se materialize. Estamos a falar de gostos, manias, perspectivas, rituais que têm uma fortíssima explicação genesíaca, e que nos desenham na folha de papel branco onde todos aterramos. Ao longo do tempo vão-se acrescentando as sombras, a ilusão do volume e substância. Alguns dos traços que geram a primeira sombra são repetidos vezes sem conta ao longo da vida, criando uma perspectiva na qual as barreiras subjectivas da solidão que cada um reconhece para si pedem para ser desmontadas, expostas, e sobretudo, enquadradas num acolhimento.


Mas em muitos casos isto é visto como puerilidade. É uma espécie de herança pateta dos dias em que a vida não era supostamente real, mas uma escada de acesso aos dias do necessário, do contundente, do pragmático. Algumas pessoas temem partilhar ou assumir qualquer coisa de original, ou uma busca qualquer que não tenha a ver com conceitos mais ou menos fáceis de explanar numa simples conversa rápida e concisa, porque a recondução ao necessário é feita com aquele ar professoral de quem “sabe o que é a vida”. Claro que depois, muitas vezes, os consultórios psíquicos enchem-se de pessoas que já nem sabem quem são, e que mesmo rodeadas de gente não conseguem partilhar nada de significativo, porque desaparece o que partilhar. Não há massa crítica, as originalidades que fizeram o contorno errático e único da pessoa reorganizam-se numa espécie de complexo de linhas e ângulos rectos, tornando-se, infelizmente, em algo normalizado, com medidas padronizadas.


A verdade é que o conhecimento profundo, ou o mais profundo possível, assenta em dois vectores, que se sucedem. A partilha empática dessas tais irregularidades profundas, e a sorte em reconhecer que essa partilha advém de uma vontade similar e não de um ajustamento quase genérico. Acredito firmemente que a razão maior para que muitas pessoas não consigam dizer que conhecem realmente outras ou pelas quais as amizades a toda a prova raramente se verificam, assenta num desconhecimento por desinteresse. As excentricidades, as unicidades, a mecânica das paixões, o esforço criativo, a originalidade, caem para um plano onde tem de haver uma cedência em meu ver bem maior do que seria desejável, até que seja uma espécie de conferência entre cantões suíços ou o clube do politicamente correcto. A neutralidade passa a ser confundida com respeito, e rapidamente tudo são coisas parecidas com as cimeiras europeias, em que se aflora muito à superfície, mas não se resolve coisa alguma.


No fundo, saber o que é importante e saber gerir essa importância como a fluidez de vontades pelo menos parcialmente partilhadas, é a sorte da empatia. A construção empática permite a partilha de paixões, porque as buscas são similares, ainda que não pelas mesmas coisas. As pessoas que sentem que estão a chegar a qualquer lado relativamente a alguém, são aquelas que sabem e pelo menos em parte conseguem embarcar na viagem de interesse, nem que seja pelo gozo de ver algo novo, de arriscar uma visão de um posicionamento que não tinham. A empatia entre as pessoas nasce do esforço consciente da materialidade, de fazer algo a partir do nada, de mexer o ar quando não há vento, de perguntar se aquela pincelada foi pensada, um o artista estava a sacudir uma mosca e torceu o pulso em cima da tela, se a excentricidade não é senão uma forma de aprofundar as mais apaixonantes e complicadas perguntas sobre algo tão efémero mas tao único como uma vida, uma personalidade e uma história.


É terrível sentir que a viagem idiossincrática é um navio quase despovoado, e é bem pior quando é olhado como uma nau de loucos.  É, em meu ver, a razão para muita da solidão e mudez daquela parte de cada um que sustenta todas as formas de solidão quando elas surgem. É que é preciso não esquecer que lá que nasce tudo quanto torna únicas as histórias muito parecidas, mas que se tornam únicas, pelo simples facto de serem nossas. E o nosso amor não é exactamente o amor dos outros, o nosso afecto não é exactamente  o afecto dos outros, as nossas paixões não são exactamente as paixões dos outros. Mas se não quisermos realmente saber o que significa o “não exactamente”, isso também não interessa nada. E nós acabamos por pouco ou nada interessar, como pouco interessa aquilo que não faz diferença alguma.


E a ser assim, é complicado. E um pouco triste, não é?


Acho eu…

 

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Eu tenho um problema sério(?).
A tristeza, que não a miséria (não há pachorra), tem uma espécie de local reservado no meu cérebro, como uma recorrência forte, ou uma memória persistente. Não é por fazer género, nem por ter qualquer espécie de atractivo, mas com o passar do tempo a coisa parece engrandecer-se, ao mesmo tempo que tento manter algum orgulho em persistir com um sentido de humor resiliente (gosto desta palavra, o que é que querem...?)

Há algo na tomada escura das coisas que tem um apelo para mim, mas como sou completamente alérgico ao niilismo, essa tristeza tem de assentar numa denúncia. De duas espécies de fenómenos. As coisas que não estão bem, e aquelas que não entendo. São angústias de efeito similar, mas umas bem pior que outras. As coisas que "não estão bem", impedem-me de fazer um juízo de relativização, e como tal, choco com elas como uma parede de concreto. E lá está, o que sai partido numa situação dessas, só poderá ser o meu nariz. E com sorte se for só isso.

Só que isso é ainda mais estupido quando começa a afectar aqueles a quem quero e devo proteger e prover. Infelizmente, parece criar uma capa que não o é, mas tão somente uma tentativa trapalhona de protegê-los de um vendaval auto-infligido que embora não pareça, custa muito a conter. Relativizar então é impossível, porque quem conversa comigo nessas alturas sou eu, e as coisas que o gajo me diz não são nada agradáveis para ele.

Ela permite-me deslizar para fora de mim quando essa contenção já não é possível. É a forma mais implacável de acolhimento que conheço. Eficaz como uma dentada com dentes afiados, mas no fundo, embora sangre, nunca infecta. Nem só de água se alimentam os reais crescimentos. Quem navega no sangue vê por dentro.  

Outros sabem mais e outras coisas, seguram um segredo perigoso com as unhas e dentes de quem vê o que eu não consigo. Há uma parca mas sentida insistência  numa contrariedade sincera e afectiva, mas que eu refuto sem saber como, porque nada tenho a apresentar senão a invisibilidade confessada daquilo que eu poderia chamar a minha substância.

A tristeza surge talvez como um depurador do licor tosco dos dias, uma tentativa de posicionar, comparativamente, a salvaguarda das coisas importantes, da denúncia de tudo aquilo que é poluição dita "relativa". Não será justo, nem competente. É talvez uma psicose encerrada em si mesma, mas que demove a violência dos seus efeitos ao comer-se em camadas de pele reptiliana, que se renegera uma e outra vez, mas por vezes mais fraca, mais incapaz de conter o seu próprio circulo interno de pequenos infernos e triunfos.

Não sou uma pessoa triste, nem acho que me possa definir como tal. Não sou uma ave de penas pretas como me definiram, mas talvez sim mais parecido com um sofredor de nanismo com feitio contestatário. Mais na versão Grimm, obviamente. Mas no olhar tendo a desmontar aquilo que é a minha convicção das sombras, e a potenciar aquilo que magoa pela simples percepção da sua existência, para que essa inoculação me vacine, e permita direccionar a energia para a única espécie de crença que tenho. Na bondade de algumas coisas, pelos seus portadores, mas essencialmente pela forma como eles as entendem e traduzem. A felicidade é a facilidade. Do idioma, da tradução, da imediatez da semântica que permite que passemos logo aos gestos.

Tenho um problema sério(?).
A cada dia de paz crescente, surge a solidez da convicção daquilo que não posso mudar, mas que ainda assim tento, e com o qual pinto de azeviche as paredes daquilo que imagino como casa.
Mas para ser justo, ao mesmo tempo fica absolutamente claro aquilo que não é relativizável.
A verdadeira dificuldade está em gerir os dias em que cada uma destas premissas gera o sentimento que lhe é mais caracteristico, com aqueles em que de facto provoca o seu contrário, pela demonstração alternada do que em cada uma delas existe, e o que persiste em ser insubstancial, ainda que imaginado. Parece complicado? Não é. É mesmo terrivelmente simples.  Ser bom ou mau demais para ser verdade, trocando de campo, é a tarefa mais difícil para quem não consegue evitar olhar para debaixo do tapete. O que vale é que no escuro, há por vezes pequenas joias perdidas, que não me ligam nenhuma e brilham assim mesmo, mostrando-me o que não sou capaz de fazer, mas criando-me a vontade de lá chegar.

Talvez eu não tenha um problema sério.
Talvez eu só não queira que as minhas perguntas me levem a ser invisível, quando eu não me admito qualquer holofote. Talvez se eu segurar um pouco no archote, não roube luz a ninguém. talvez se o largar, ainda reste alguma.
Talvez eu não seja triste.
Já pensaram (pensei) nisso?
E talvez eu até o vá dizendo.
Preciso claramente de aprender línguas... Como é que se pede desculpa em Babel?


Diz a vox populi que as surpresas nunca terminam. No que diz respeito a situações que envolvem pessoas capazes de pensamentos e emoções complexas, isso é uma verdade absoluta. Bem sei que há meia dúzia de iluminados que acham que a monitorização do comportamento humano acabou com a capacidade de surpreender desde os gregos, e que tudo é uma espécie de recauchutagem, mas não estou de acordo. Para pessoas brilhantes que conseguem entender uma equação acessível a apenas 70 pessoas no mundo, qualquer reacção humana é obviamente uma coisa pífia e diriam eles, desnecessária. Aliás, se não me falha a memória, um russo, julgo eu, vencedor de um prémio equiparado a Nobel da matemática, recusou o prémio e vivia numa espécie de vida de economia de subsistência, em quase reclusão.

Mas para o mundo mais em geral, as surpresas podem advir de um comportamento já imaginado por alguém, mas idiossincraticamente tornam-se únicos. Nenhuma situação é igual a outra, porque os protagonistas nunca são os mesmos, e as atitudes tem a tendência para se modificaram de forma única, como pregas na roupa que nunca se repetem. Mas há padrões. Definimos comportamentos. As coisas que nos alegram e dão prazer têm consistências. As que nos chateiam também. E no meio de tudo isto, a surpresa surge como uma espécie de amálgama eclética de elementos que constituem uma coisa qualificada como nunca vista. A surpresa, boa ou má, ou só mesmo incrível, surge como uma singularidade. Aliada à constância do elemento surpresa está a pergunta que nos leva a questionar o que fazer com ela. E quando nos referimos ao que fazer com ela, lá surge a qualificação que temos de fazer da mesma. Como é que deixamos que ela nos afecte, nos determine uma visão alternativa sobre um fenómeno, como nos molda, o que passamos a ser e pensar a partir dela. Obviamente que ela pode ser construtiva ou gregária de riqueza, ou destrutiva e denunciadora de falhas retorcidas na fibra do real. A incredulidade é assim um desejo de ordem mínima. Assenta num anseio por expectativas. É uma reacção de pele ao que se encara como uma lógica de passado, de conclusão, de percepção, nem sempre boa, das realidades. E é por isso que por vezes a surpresa não molda nada, não traz transformação, não reavalia as premissas. Consigo, porta apenas a consciência de coisas que nos agradaram ou feriram, relembrando os conceitos mas raramente, ou nunca, as pessoas de onde partiram. No fundo é um prazer ou mágoa diferida, não pelo mensageiro, mas pelo conforto ou medo/repúdio pela universalidade que a mensagem corre o risco de ter. As surpresas nunca terminam porque não sabemos nem bem o que somos, quanto mais antecipar os outros. Mas como disse acima, por vezes trazem a sombra de conceitos, e coisas que, não entendendo completamente, gostaríamos ainda assim que surgissem mais claras se ao menos fossem traduzidas com verdade nos seus opostos. A tempo e de raiz, claro está... Perante males irremediáveis, o resto pouco ou nada interessa. Os crocodilos têm demasiados dentes...