quinta-feira, 31 de maio de 2012

«Desta vez, a Maria João teve sorte. Nunca tinha visto uma médica a chorar. Foi a Maria João que puxou as lágrimas, quando a Dra. Teresa Ferreira lhe disse que não havia mais metástases dentro dela. Ficámos os três a chorar e a olhar para os outros olhos a chorar.

A minha amada já tinha esquecido o futuro. Já não queria saber da casa nova, do tecido para forrar os sofás, do Verão seguinte. Estava convencida que estava cheia de metástases. Doía-lhe o corpo todo. Tinha desanimado. Estava preparada para a morte. Só a morte é mais triste. Tinha-se preparado para ouvir o que já sabia, para não se assustar quando lhe dissessem que o cancro na mama tinha voltado e que se tinha espalhado por toda a parte.

Depois - mas não logo, porque não é de momento para o outro que se desmorre - voltou a ver vida pela frente. Reapareceu um horizonte e um caminho até lá, com passos para dar. "São tão raras as boas notícias", disse a médica, "e é tão bom dá-las, vocês não imaginam". Nós não imaginámos. Começámos a chorar. As lágrimas ajudam muito. As dos outros especialmente. Chorar sozinho não tem o mesmo efeito. A Maria João tem chorado por razões tristes. Desta vez estava a chorar de felicidade.

Como chora cada vez que ouve ou lê palavras doces, a dar força, a partilhar a dor, a juntar-se para que ela saiba que há muita gente a sofrer com ela, tal é a vontade delas que ela não sofra. Ou sofra pouco. Embora isto de se ficar vivo também se estranhe um bocadinho.»


Miguel Esteves Cardoso - 31-05-2012


Este texto andou a circular pela net hoje, e além de ser bonito pela óbvia e honesta emoção dele destila, lança(me) questões muito pertinentes acerca de vários temas.
O primeiro assenta na premissa base de que o medo, a simplicidade terrível das coisas importantes, decisivas, vitais, desmonta a pretensa elegância distante com que por vezes as pessoas se dirigem às coisas. Quando se trata de algo como a eminência de uma perda maior, a filtragem desaparece imediatamente, e as palavras ganham uma espécie de agilidade torrencial, porque é assim que “sai”, como tudo o resto. Quando o medo é gigantesco, a carapaça desencantada com que se destilam assuntos tão tremendos como a morte derrete-se mais depressa que a cera das asas do filho de Dédalo.
No fundo isto também nos deve alertar um pouco. Bem sei que perante estes desmandos injustos e terríveis da natureza, o músculo da relativização sofre umas cãibras valentes. Tudo é afinal único, urgente, o mundo pode de facto acabar e as consequências são bem reais, ao contrário de uma espécie de defesa distante que permite quase encaixar tudo o que acontece, nem que seja numa tomada de consciência do caos em que se pode ficar.
Este texto é tão mais bonito porque nada nele existe senão a vontade de contar coisas que dificilmente, ou jamais, arrisco, poderíamos traduzir de forma adequada quando nos acontece. Porque qualquer arrumação semântica desse conceito assemelha-se a tentar vestir roupas de infante num lutador de sumo. Tudo é ultrapassado, até mesmo o relator. Há uma humanização, que até vi no António Lobo Antunes, quando esteve doente, o qual, não obstante ser um escritor genial, tem uma caganeirice que por vezes agasta um pedaço. Mas com os desmandos da natureza, há não uma descaracterização, mas talvez um ligeiro incremento da generosidade empática, já que na fragilidade de encontra o carácter universal das únicas coisas que talvez nos unam realmente uns aos outros.
O que me leva ao segundo ponto.
Serão estes instantes necessários para a percepção dos laços, ou da robustez dos mesmos? Será que essas percepção não deve ser um trabalho de continuidade, uma espécie de construção. É curioso como grassa a ideia das pessoas que “têm a sua vida”, porque encontraram alguém, porque se entregaram ao seu trabalho, porque descobriram que há magia no colecionismo de caixas antigas de Maizena, e que por isso, há um prolongadíssimo desconto de tempo perante os outros, do qual voltarão se o jogo tiver de voltar a mexer. Curioso e perigoso, como a realidade o tem recentemente demonstrado, em quintais perto dos meus. Há um perigo no pensamento de grupo, se ele for acrítico. Mas se existir a sorte deste ser simultaneamente cúmplice, real e empático, a verdade é que o mesmo em nada obstará à vida “que se tem”.
De um momento para o outro, pode sobrevir a morte, a perda, a dissolução, e a verdade é que embora a amizade não seja um sentimento tão neutro ou pacifico como querem fazer passar, é ainda aquele que permite, ou deveria permitir, uma elasticidade generosa. Mas a elasticidade significa precisamente que a matéria só se esticará até certa altura, finda a qual, sob pena de destruição, terá de voltar ao ponto de origem, num impulso natural e derivado da sua natureza. Como um cordão elástico, as afectividades ditas fraternais aguardar-nos-ão como um cronista paciente à espera de notícias, mas a certa altura poderão dar-nos como mortos. E aí não há protagonista, nem história.
Aos que importam, algumas coisas devem ser ditas. Não se trata de cobrança, mas de esclarecimento. De designação de papéis, de espremer o fruto para saber se é sumo ou cera o que sairá. Não se deve esperar para ver o que acontece quando o cenário é árido e os visitantes raros, a não ser aqueles que sabem, ou gostaríamos que soubesses, como se lá chega.
Hoje estamos bem, e amanhã todo o mundo pode ter levado um piparote. E se somos mais ricos na diversificação complementar, há que perceber que isso só se efectiva materialmente. Só há reacção por força da acção. O pressuposto é o fogo que parece poder arrefecer, mas que num cenário de inferno, só aumenta o incêndio.
Escrevamos uma carta, mandemos um sms, tenhamos uma conversa com mais unhas e dentes, peçam mais esclarecimentos. Mas garantamos e cuidemos também dos nossos que não são as famílias ou Amores. Podem ser poucos, mas que sejam alguns. Porque a certa altura, poderão ser a única mão que se lança, e noutras, são aquilo que nos ajuda a viver ainda melhor o que felizmente possamos ter. E isso faz-se da acção onde a maioria está inerte, e a entrada de peito feito onde a maioria nem sabe que existe uma porta.
Não esperem que aconteça isto que o texto relata, aplicando-o às mais variadas formas de perda. Hoje são uns, amanhã outros. Uns poderão ter sorte, outros não. E se nada disto é controlável, pelo menos o rescaldo ou a vivência poderão ser tão melhores ou piores em função dos que tanto quiseram e souberam ficar, como souberam levar-nos até lá, seja lá onde isso for.

E claro, a melhor das sortes para o MEC e a sua Maria João.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

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Há certamente quem possa festejar nos próximos tempos, ou não, é sujeito a questões pertinentes, mas para os arautos de um certo e particular tipo de desgraça, este é o dia em que o resultado pode ser ameaçado, mas ainda assim, nunca terão razão, precisamente pelo que persiste, exactamente pela mesma razão que nasceu. E isso não há nada capaz de desvirtuar ou mesmo destruir. Há coisas que, quando sucedem, ultrapassam a nossa capacidade de lhes fazer justiça, tal é a medida do que arrasa, mas o silêncio nunca é opção perante aquilo que queima.

terça-feira, 8 de maio de 2012

Há uma frase do Principezinho, que, como a máxima latina de que John Keating repetiu algumas vezes num filme saudoso, se tornou uma espécie de recorrência conceptual e em alguns casos substitutiva de uma arguição alternativa da mesma ideia por palavras próprias.  Pior ainda eu ser repisada até à exaustão, é a sua, em meu ver, incorrecta aplicação, que radica, em muitos casos, numa tentativa que as pessoas têm de passar a culpa dos seus males de amor para o objecto do seu desejo. Ainda por cima porque se descontextualiza, muitas vezes, o objectivo da frase na própria obra, aproveitando-a para uma espécie de “partiu” pagou, quando o responsável pela destruição das porcelanas é aquele que faz a acusação.
Diz a frase que “Tu tornas-te eternamente responsável por aquilo que cativas.”
E é normalmente aqui que os disparates começam.
Em primeiro lugar ninguém é responsável por cativar outra pessoa, a não ser que esse interesse tenha sido despertado à custa de ilusões e mentiras muito bem colocadas para criar um quadro de intenções que depois não tem qualquer intenção prática. Se as pessoas mentem para criar uma espécie de aplicabilidade empática absoluta com um outro ou outra caramela, então aí sim, há uma responsabilidade, porque as pessoas, sem conhecimento de causa, passaram a perseguir algo que lhes era facultado, mas que na verdade não existia. Mas é um disparate imenso achar-se que alguém é (objectivamente?) responsável pelo facto de outras pessoas a acharem cativante, ou gostarem dela, ou a quererem como objecto de desejo e entrega afectiva, só porque tratam bem outra pessoa, ou até podem mesmo ter outra coisa para oferecer, mas que não corresponde exactamente ao que o “cativado” pretende.
Tirando adolescentes, cujas hormonas andam demasiadamente misturadas com as celulazinhas cinzentas, as pessoas têm de ler as coisas como elas são, e não como gostariam que fosse, ou pior, como acham que cedo ou tarde conseguirão que elas venham a ser. Há uma dissimulação ilegítima quando a pessoa que é cativada acha que ao sê-lo, só o poderia ser com base nos seus objectivos, gostos e preferências, achando que o outro só o fez de acordo com esse arquétipo, e que qualquer desvio significa um engano. Errado! Engano está na preferência pela manutenção da busca pelo objectivo, ignorando a informação que se possui, e chegando a crer para além da vontade do cativante.
Ninguém é responsável por nada que não possa dar, e acho até mesmo aviltante que se possa acusar as pessoas de serem imprudentes quando nada no seu comportamento levou a que as coisas pudessem ser interpretadas de outra forma senão aquela que configura a disponibilidade afectiva e pessoal que de facto têm ou estão dispostas a dar. Quanto muito as pessoas têm, aí sim, o dever de avisar que entre as intenções do cativado e do cativante, há diferenças, e que elas devem ser claras para que algo possa ou não acontecer. Mas depois disso estar bem definido, “all bets are off”, e cada pessoa corre os seus riscos, sabendo desde logo como é que a coisa funciona.
Eu bem sei que é tentador passar a batata quente da culpa e da dor afectiva para alguém, especialmente se esse alguém afinal puder assumir o papel do manipulador/cativador dissimulado e predatório. Ganha-se como que uma espécie de auto-convencimento de autoridade moral, através da qual aquilo que foi oferecido, mas que não podia ser usufruído pelo cativante da forma desejada pelo cativado, surge como injustamente repudiado porque o cativante “deveria ter tido cuidado”. Daí ao bandalho ou à rameira imprestável é um passo, e afinal o cativado não perdeu nada porque a pessoa em causa nem sequer valia a pena e bla bla bla…
Além disto ser um disparate semelhante ao pior da literatura de auto-ajuda, é injusto, e até algo insidioso, porque se baseia num conhecimento que já se tinha, mas que teria de ser necessariamente diferente só porque o cativado assim o desejava. E como me parece claro, as pessoas só darão aquilo que podem dar, e desde que isso esteja esclarecido, o jogo da afectividade, em todas as suas vertentes, é um risco. Depois de avisados, só lá vai quem quer. E sabe ao que vai. Achar que quem simplesmente se limitou a dizer as coisas como eram, e a viver as situações de acordo com isso, é descuidado, é quase como dizer que a reciprocidade é obrigatória, o que granjeia altas posições no ranking da tontice.
Assim como é claro que os cativantes não devem jogar com falsas premissas baseadas em coisas que não pretendem fazer ou não conseguem sentir, os cativados não têm qualquer razão para achar-se devedores de uma qualquer espécie de cuidado acrescido quando sabiam exactamente ao que iam, e o fizeram de livre vontade e ainda por cima com uma agenda bem definida.
Portanto, ninguém é responsável pelo que cativa, desde que o faça com a transparência e generosidade de quem é e do que lhe é possível. Se não forem contadas histórias, as relações, sejam elas de que espécies forem, são possíveis, até mesmo em desequilíbrios afectivos, desde que haja uma assumpção clara do que se passa e as pessoas não construam nada com base em premissas enganosas.
Ninguém é culpado, ainda que possa ser eventualmente responsável, por inspirar um desejo, criar uma afeição, ser a perfeita personagem na melhor das histórias, somente por ser quem é. E há até quem avise bem quais os riscos, uma e outra e outra vez. Desde que saiba isso, o cativado passou a responsabilidade, e eventual culpa da frustração dos seus objectivos, para si. Passar a responsabilidade para quem cativou é uma forma de desresponsabilização que pode parecer prática, mas parece-me quase uma espécie de “calimerização” que dificilmente convence quem olha para as coisas com o mínimo de respeito pelos factos. Acerca disto, recomendo o visionamento do fantástico “500 Dias de Verão” e como, lamentavelmente,  tantas vezes as pessoas vêm para além de si mesmas e do que realmente as coisas são…