quarta-feira, 5 de setembro de 2012

A estupefacção pode surgir por uma miríade de motivos. O que é estranho para um céptico, pessimista e agnóstico como eu, mas a verdade é que não cesso de me surpreender, o que em si é uma atitude tão profundamente parva como inevitável.
 
Tendo a pensar que muitas pessoas fazem uma série de confusões comigo, ou com aquilo que consideram ser a minha avaliação “correcta”. E essa avaliação bifurca-se. Há muito daquilo que supostamente me caracteriza que parece ofender as sensibilidades alheias e as suas ideias de correcção, por um lado, e há quem ache que as minhas costas são do tamanho da muralha da China e com a mesma consistência, pelo que nada do que sucede pode ter qualquer efeito, um pouco como um ricochete resiliente e perpétuo. Esta última percepção varia entre o cómico e o triste, porque em qualquer uma das perspectivas há uma avaliação errada, por um lado, e uma condescendência absoluta, por outro. Há uma ideia clara de que o que quer que seja feito não tem efeitos, que não provoca consequências. Há uma ideia de que o tipo é boa praça, como dizem os brasileiros, portanto por muito que lhe lixemos o canastro o gajo não vai levar a mal, não tomará atitudes extremas, não se zangará, não ganhará resistências. O que quer que aconteça não terá efeitos. É indiferente o peso e largura do calhau que lhe deitamos à cabeça. Ele simplesmente sacode o pó e levanta-se, porque afinal, sabemos que ele aguenta. Sabemos que ele não fará nada de drástico. Sabemos que é um pachola que nunca se chateia com ninguém, que não tem acessos de raiva, que não agride a um certo ponto mesmo quando deve, que afinal é um ser peculiar e estranho a quem nada do que acontece pode e deve provocar efeitos.
 
Os meus amigos mais próximos sabem desta história que vou contar a seguir.
 
Tive um treinador que me chagava a cabeça ao impensável, treino após treino, com razão e sem razão, de forma agressiva e constante. A mim nunca me chateou determinado tipo de jogo mental, desde que eu perceba que não é mal intencionado, mas aquela situação aborreceu-me sobremaneira. Todos os treinos a mesma coisa. Castanhada de criar bicho, a mim e outro par de artistas, ao passo que outros marialvas passeavam a classe da asneira sem que ninguém os chateasse muito, ou mesmo nada. Certo dia, com os cornos no ar, a reprimenda nº 756754675 caiu-me mal, e dei comigo a ter de fazer aquilo que nunca faço – respondi com a voz bem alta, com uma agressividade que não me é característica, numa simples questão – porque lhe teria eu saído na rifa constantemente. Vi o ar de surpresa na face dele, uma pessoa que de facto não me queria mal, mas que entendeu aquela minha reacção com uma outra reacção própria de surpresa. Certamente ele não esperaria aquilo. Mas disse-mo com a maios das canduras, até ingénua, e que em parte me irritou, mas que lançou outro tipo de reflexão mais complicada. Quando lhe perguntei porque raio não chateava ele também os outros, ele olhou-me com a maior das honestidades e disse-me:
 
“Porque sei que aguentas”.
 
Ora isto é apenas um exemplo inofensivo, de algo que tem a importância que tem, como um hobbie, mesmo que eu me dedique a ele como me dedico, mas não teria essa repercussão se eu não pudesse retirar do contexto e aplicar a uma generalidade de acontecimentos na minha vida. A verdade é que aquela pessoa, como muitas até mais próximas, e mesmo algumas muito próximas, tinham essa ideia cravada. A ideia do tipo que não se chateia. Do indivíduo com quem não se tem de ter muito cuidado porque a natureza dele é de relevar o que seja feito e triar tudo ao impensável, num ecletismo de sobrevivência que o torna uma espécie de pilar de calhau que até pode estar um bocado esmurrado, mas que ali fica, quedo e perene. A ideia do tipo que não precisa de nada, que se aguenta à pipoca, que até tem muita sorte e nem deve falar muito, do lábio persistente lábio superior duro, que resolve tudo sozinho, que quando a coisa aperta, normalmente chega-se à frente. E parte disto torna-se uma imagem muito triste a ser passada. Porque dá certamente uma ideia de fraqueza, ou pior, de insignificância que não granjeia o respeito de muito cuidado. É como ser feito de uma matéria incrivelmente elástica, que mesmo que deforme, é-lhe expectável que retorne ao contorno inicial. Cada um é o que é, e aquela matéria é o que é, e tem de ser assim, sob pena de essa condescendência passar a algo pior, como é a absoluta irrelevância.
 
Isto custa um bocado. Sinceramente envergonha. Porque o responsável é só um, a lógica é só uma, tudo é linear e unitário, na estrita medida daquilo que fui tentando sempre evitar como conclusão. As pessoas só farão aquilo que lhes permitirmos, e só o repetirão se a nossa dose de boa fé afectiva conseguir rearranjar aquilo que poderia parecer para além do concerto. Eu sou o culpado de tudo isso, de permitir que isso acontecesse, de passar a ideia às pessoas que isso seria de alguma forma justificável. Fui eu que permiti que algumas pessoas achassem normal um descaso absoluto quando anteriormente beneficiaram de ajuda, fui eu que permiti que após uma e outra agressão, fosse de alguma forma arranjando boa-fé para permitir mais algumas, fui eu que dei a noção de que determinados actos, insuportáveis para muitos, fossem apenas passíveis de dissecação nos seus fundamentos, perdendo assim a sua mordidela venenosamente dolorosa. Fui eu que tentei sempre justificar, fui eu que tentei sempre não retribuir da mesma moeda, fui eu que nunca guardei rancores, fui eu que fui aceitando silêncios com retortas de acolhimento estupido, fui eu que deixei, permiti, me caracterizei, habituei, e pior que tudo, esperei que a reacção em muitos casos não fosse expectável. Para um céptico, isso é ser incrivelmente estúpido e incongruente. Admite uma esperança vexatória numa expectativa racionalizada, ou num adiamento de algo, como se tivesse a certeza que a próxima atitude é que era.
 
Um amigo disse-me sempre que não se deve esperar nada dos outros, que não se deve medir nada pelo que achamos ser o mínimo exigível. Ainda não concordo com ele, mesmo que veja, perante a realidade dos factos, que ele tem razão. Não é o primeiro conceito no qual insisto teimosamente, mesmo sabendo-o minoritário ou quase extinto. Mas o afloramento deste é da minha responsabilidade, e a vergonha que sinto chateia-me de cacete. Chateia-me ter dado as ferramentas para que isso acontecesse. Que tenha permitido que me qualificassem assim, e ainda por cima, com a noção de que essa era a forma certa de agir para com os outros. Pior que dar a outra face é passar a imagem de um pateta com toda uma cara para levar estalos. Mas há alguma lógica. Entre dois, o animal que não ruge normalmente é o prato do dia. (sorriso)
 
Tenho vergonha de o ter permitido toda uma vida. E ser essa a explicação para uma série de coisas. Como a anatomia de uma auto-estima destruída ser uma coisa algo suicidária. Pelo menos na autoria. Se dizem que as pessoas não mudam, e se eu for realmente isto que aqui se conclui, estou bem lixado… (sorriso ?)



sexta-feira, 20 de julho de 2012

Dizem que o senso de valor é auto-atribuído. Um pouco como uma prova qualquer em que somos concorrentes e decisores. A mim parece-me desde logo um erro de premissa. Se assim fosse, o contrário não seria possível, ou seja, o facto de existirem pessoas que se acham menos boas e são qualificadas ao contrário por quem observa ou com elas interage, não seria logicamente possível. 
A ideia, como talvez tantas outras coisas, assenta num estágio intermédio, de coordenação de esforços internos e exógenos, até que algo pareça suficientemente partilhado para formar uma convicção, um elemento verificável através de uma consistência estatística, à falta de melhor termo. 
Achar que o valor pode partir única e exclusivamente da percepção como tal do próprio, parece-me tão falacioso como o absoluto contrário. Há definitivamente quem tenha o condão de nos poder corroborar uma positividade, ou fazer florescer toda a negatividade até um extremo dificilmente debelável.  A dor ou mal estar ínsitos nessa percepção são terrivelmente eficazes na sua acção, porque isolam numa acção avassaladora, a contrariedade de todos os desejos tidos para exteriorizar algo de bom. Um pouco como se quem mais devesse aplaudir se limitasse a um bufar de enfado, e em casos não raros, uma vaia. 
Achamos que, por estarmos talvez em contacto com a nossa coerência interna, devemos exultar o auto-valor como uma lógica absoluta, ou seja, quem denegrir incorre numa espécie fácil de diagnóstico de ignorância porque ao não estar dentro de nós não sabe realmente quem ou o que somos. Mas até que ponto poderemos definir-nos senão em contraste com semelhantes, senão como algo característico num universo de semelhantes, mas não iguais?
Não interessa o que (os, alguns?) outros pensam? Como não interessa?
Talvez não logre os (bons) objectivos sozinhos, mas acabará por ser instrumental no que queremos ser, onde queremos chegar, pelo que alguns serão capazes de (nos) reconhecer. E alguns poderão mesmo dar cabo de tudo. Mesmo que não dêem por isso, ou achem que se trata precisamente do inverso.
Mesmo para um auto-detractor de longa data, isto parece-me insofismável...


quarta-feira, 18 de julho de 2012

É de facto um mundo estranho ou muita coisa mal feita quando o piores momentos são ventilados a olhos desconhecidos ou inexistentes, só pela pura necessidade de deixar algo sair. Pode ser o mundo que criámos, mas temo pelo que nos fará ou já terá feito...

sexta-feira, 6 de julho de 2012

"Don't feel guilty if you don't know what you want to do with your life. The most interesting people I know didn't know at 22 what they wanted to do with their lives. Some of the most interesting 40-year-olds I know still don't.

 (...)

 Maybe you'll marry, maybe you won't. Maybe you'll have children, maybe you won't. Maybe you'll divorce at 40, maybe you'll dance the funky chicken on your 75th wedding anniversary. Whatever you do, don't congratulate yourself too much, or berate yourself either. Your choices are half chance. So are everybody else's."

Mary Schmich



A 1 de Junho de 1997, esta mulher produziu este fantástico texto, o qual foi durante algum tempo erroneamente atribuído a Kurt Vonnegut, e se tornou uma peça de culto, sendo reaproveitada por Bazz Lhurman em 1999.

Schmich dizia que era o texto que escreveria se lhe pedissem para o fazer aquando da sua formatura universitária. Adaptando à nossa realidade, algo que um finalista leria, vestido de preto e com uma pasta cheia de fitas com cores.

A verdade é que é isso mesmo. As nossas hipóteses são 50/50, a sorte pode ditar que a oportunidade de uma vida se gore, ou não, como a aliança de “Match Point” que cabriola e acaba por salvar o que talvez não devesse ser salvo. Conhecemos muitas pessoas ao longo da vida, e teremos sorte, julgo eu, se nem nos lembrarmos de algum rancor guardado. É muito complicado, mas também julgo possível que talvez seja possível serenar com a ideia de que a mais profunda incompreensão relativamente ao funcionamento das coisas seja aquilo que as possa explicar. E é ainda mais difícil não descarregar algo negativo sobre as explicações que encontramos facilmente para o que supostamente não funciona. Eu não consigo. Mas não quer dizer que não ache que não o devamos fazer. Não quer dizer que não o tente. Vale o que vale, mas não tenho uma desculpa melhor.

Não é que consiga perspectivar tudo. Diabo, cada vez é menor o leque de coisas que consigo relativizar. E no entanto, mesmo no meio do caos daquilo que não funciona, surge precisamente a oportunidade perfeita para testar aquilo que deve permanecer. É como levar a minha (nossa?) teimosia ao Pepsi Challenge. É tentar saber o que estou a fazer, mesmo sabendo que raramente, se é que alguma vez, o conseguirei fazer. É o gosto do fazer, mesmo que saiba que a lógica é sempre, mas sempre, o conseguir.

O que posso esperar é que aquilo em que assentei arraiais possa de alguma forma florir. Que ainda acredite que algo em mim possa passar por indispensável a alguém, ainda que nunca nada jamais o seja. Que ao envelhecer, os meus arrependimentos me deem vontade de rir porque são apenas a forma mais simples de perceber que fiz asneira e que pouco ou nada há a fazer. E que não importa por isso mesmo. Era giro é que não achasse que não serei capaz de o fazer jamais, porque não tenho a capacidade de evoluir para além de muitos deles.  

Há efectivamente coisas que ficam connosco. E montamos a nossa tenda de campanha em torno do que realmente levamos quando alguém nos anuncia um cenário de catástrofe. Tudo o que deixamos no fogo, é tudo aquilo que ainda não conseguimos colar à pele, ainda que doa como se o tivéssemos arrancado com força da mesma. É a ideia que tenho, e mais uma vez, vale o que vale. O que fica, segue. Permanece.

O Neil Gaiman falava em segredos e mistérios. Dos segundos lembramo-nos facilmente. São alcovitices da memória, copos de água silenciosos quando o que se apresenta é árido como qualquer solidão. Dos primeiros, nunca nos livramos. Mesmo quando achamos que não nos recordamos deles.

Por isso, prosseguir com cuidado é uma espécie de contradição em termos. É tudo aleatório, ainda que eu aja como se não acreditasse nisso. E é por isso que é perigoso. Pela estranha paz feita de inapelável que traz. Pela ilusão de que compreendemos melhor do que efectivamente fazemos, pelo simples facto de que tudo o que não pensa mas vive experiencia uma renovação necessária. As flores de Maio voltam, as viagens acabam, os pássaros, peixes, lémures e outros voltam, nem que seja para morrer. O mundo renova-se, ainda que isso não signifique que se rearranja.

As nossas hipóteses são 50/50. Estende-se a mão e pede-se, talvez até porque não pertence aquele a quem se pede. Alguns rezam. Eu não tenho essa sorte. Olho, ouço, e pergunto, pergunto, pergunto.

E quase aos 40, é um facto que ainda não sei.

Não só o que quero fazer, mas sim, aceitar um desconhecimento de praticamente tudo.

terça-feira, 3 de julho de 2012

Há uma coisa que nunca devemos subestimar.

Nunca julguemos que a dor é como a imaginámos.

É sempre surpreendentemente mais requintada e intensa.


O mais confuso acerca de algumas pessoas é o facto de navegarem sempre mais empoladas naquilo que supostamente lhes contraria o instinto comunicado ao exterior, identificativo ou "pensado". O que dizem à malta que são, sem sombra de dúvida... É como se achassem que a história que contam lhes desse a possibilidade de alegarem o caos onde gostam de se meter como a excepção para a sua dita "normalidade". O grande problema, é que muitas dessas pessoas fazem-no pela sede do conflito, ou pela eterna cenoura que foge, e nunca pelo simples facto de terem de ser verdadeiras consigo antes de o poderem ser com qualquer pessoa, convenção ou ideia. É como se metessem água por razões ainda piores do que aquelas que normalmente justificam o alagar do cenário, ao invés de aceitarem que o motivo perante si próprios é o que provavelmente permite que a monção se repita poucas vezes...


A identificação da racionalidade como distanciamento é um raciocínio falacioso.
Em muitos casos, permite construir a valoração dos sujeitos, dos eventos, das situações, e acima de tudo, ensina o valor do respeito pelos outros e por aquilo que eles têm ou o necessitam de ser.
Ensina a permitir a inversão dos raciocínios e a calçar outros sapatos, além de solidificar o respeito pelos nossos.
É po...r isso que a educação e o respeito só devem ser negados na mais extrema das circunstâncias, mesmo perante a mais complicada das pessoas ou situações. Porque, no fundo, estamos também e sempre a fazê-lo por nós, e em respeito ao que, pelo menos, gostaríamos de ser.

"I wanted you to see what real courage is, instead of getting the idea that courage is a man with a gun in his hand. It's when you know you're licked before you begin but you begin anyway and you see it through no matter what. You rarely win, but sometimes you do."
Harper Lee - To Kill a Mockingbird


segunda-feira, 2 de julho de 2012


Há instantes na vida que definem uma série de coisas. São despertadores. São, pela sua simples qualidade factual, demonstrativas de uma realidade que entra pelos olhos e entendimento, e não deixa margem para interpretações mais criativas. São instantes contundentes porque estão lá. São as sintomatologias da herança pessoal, da marca nos outros, da importância que algo em nós assume enquanto factor inultrapassável. Aquilo que somos, ou não, capazes de representar seja para quem for.

Em meu ver existem duas formas de representar este fenómeno. Ou se quiser ser mais exacto, existem dois destinatários para as relações causa-efeito subjacentes à realidade que surge em certos momentos. Essa realidade é tão imensa que permite apenas juízos mais absolutos. Pelo menos internamente, o que leva às tais duas opções de análise do fenómeno, mas já lá vamos. Antes a ideia é bem clara. Estou, ou estive lá, e percebi. Acho que todos percebemos numa altura assim, um certo preço de sermos quem somos, e o que vale todas as tentativas de fazer o melhor que podemos com esse lastro em cima. é possível ver tudo com uma luz analítica, mais ou menos explicativa, tudo pleno, como uma fonte que jorra entendimento e sentido como água cristalina. Sei dos porquês, e sei que até fazem sentido. Sei da pretensa justiça ou falta dela, oriunda das conclusões que um senso de valor arrasado pode ou não tirar. E é precisamente aí que entram as duas opções, as duas representações conclusivas possíveis, os dois olhares face aos factos, as duas interpretações face ao que resulta daquilo que somos, muitas vezes independentemente daquilo que fazemos. E custa o diabo. É, não raras vezes, uma grande merda. É abrangente, é simples, e é terrivelmente solitária. Quando apagamos a luz, é só o que lá está. Num movimento circular pleno de repetições das ideias, das imagens, das repercussões daquilo que afinal é a materialidade daquilo de onde vim, de onde vimos todos, e aquilo no qual isso se demonstra. Ou não, no caso.

 Uma das interpretações possíveis, é olhar para fora e assacar uma responsabilidade ao exterior. É achar que, de alguma forma, aquilo que leva a certas conclusões assenta numa espécie de desencaixe do qual não se é responsável. São os outros, são as outras desadequações, são as faltas ou más vontades. Uma possibilidade é achar que algumas coisas são afrontas ou desconsiderações alheias, às quais um senso de auto-valor ou qualidade permite desmontar como latidos à passagem das caravanas. Há algo neste raciocínio que apresenta pontos positivos. A validação do eu, a protecção da identidade e do núcleo afectivo e emocional. Há toda uma industria nos dias que correm, feita de psicólogos e livros de auto-ajuda, de um discurso de valorização cheio de slogans chamativos, com coaching e quejandos, que assenta nesta defesa da qualidade da pessoa, na protecção do tal núcleo, da qualidade do indivíduo, das suas capacidades e feitos e por aí fora. Claro que poderia apontar umas quantas coisas a esta forma de reacção, até porque acho que há uma ou duas contradições enormes em toda a metodologia, mas isso seria eu a ser eu a ser parcial. Há quem se sinta muito bem com essas premissas, que ache que elas funcionam, que se repetirem muitas vezes uma coisa ela passa a ser verdade... bem, adiante. No fundo há aqui uma ponta de inveja. Deve ser bom conseguir de alguma forma encontrar uma luz em todos os recantos aparentemente escuros dos quais uma pessoa é feita. Deve ser bom ser capaz de encontrar enquadramentos internos para tudo quando suscita dúvidas, inseguranças, monstros nos armários e sulcos nas paredes da estrutura. Deve ser muito bom explicar que algumas coisas acontecem por falha interpretativa e genericamente alheia e não pelo desconjuntamento do objecto de análise, por aquilo que ele, por muito que tente, talvez não seja simplesmente capaz de lograr junto de tudo quando o rodeia.

O que leva à segunda interpretação. Perante a contundência recorrente de uma série de fenómenos, uma panóplia de conclusões, há quem acredite em coincidências, e há quem prefira analisar a estrutura essencial do foco dos tais fenómenos. Eu prefiro remoer à exaustão aquilo que parece mais provável, ainda que não seja exactamente o mais meigo ou mais recomendável para a estrutura pessoal. Eu prefiro encontrar o elemento de constância, o denominador comum, e começar a fazer perguntas. Muitas perguntas. Bem sei que nessa panóplia de questões, muitas não serão boas. Sei que o ideal em muitas situações, é talvez desligar a máquina, não pensar, não tentar coçar a pele até que ela sangre, só para saber afinal que era pele. Sei uma carrada dessas coisas. Mas também sei que os fenómenos muito raramente escapam a qualquer âmbito analítico, por mais complicado ou esticado que seja. Porque esses fenómenos acontecem. Acontecem-nos. E por muito que gostasse de achar que, lá está, a virtude está algures entre a coincidência e a lógica caótica (sim, o oxímoro é propositado) do que é a vida de cada um, a constância de alguns fenómenos, a sua importância nos instantes em que surgem, impedem (me) de tais veleidades. Quando estamos demasiadas vezes em cenários onde coisas boas ou más acontecem, a coincidência começa a ser descartável, como um papel escrito a sumo de limão cujo calor começa a revelar o que realmente lá está. E a verdade é que olhando para uma série de situações que ao longo dos anos teimaram em suceder, em instantes perfeitamente colocados em pressupostos que potenciaram os seus impactos para a estratosfera pessoal onde a maluqueira, os medos e as dores todas pairam, algumas conclusões são impossíveis de não retirar. Não são lá muito fáceis, e estruturam-se essencialmente em perguntas, mas estão lá. Como certos instantes, e as realidades que demonstraram, por mais explicativas que possam ser as suas causas ou formatos.

Este não é um processo fácil. A chuva de castanhada interna é complicadíssima, e as reflexões são intermináveis. Enfileira-se tudo como uma espécie de enunciado imenso, complicado, mas claramente traçável. Nuns pontos os cálculos fazem-se, noutros ficam apenas as premissas. Mas estão lá os factos. Estão lá as coisas que não aconteceram, as coisas que não se logrou, o que não se conseguiu transmitir, explicar ou mostrar.

Há uma certa paradoxalidade, uma espécie de paz com dentes, quando se vira toda esta análise para um foco interno. Por um lado é bom não identificar, pelo menos na esmagadora maioria, responsabilidades alheias, porque se assim fosse, se tivesse caravana para passar incólume ao ladrar dos piruças, o que se faz a seguir? As acções para algo tão instintivo como passar ao lado da relevância do tanto que acontece são um pouco como tentar apanhar água de um regato com um guardanapo. A intenção está lá, e os movimentos até podem ser certos, mas perante tanto antagonismo de substância, os resultados falam por si.

 Não.

Não mesmo.

Sinceramente, acho que perante tantas repetições, tantas oscilações de realidade quase sempre para o mesmo lado, há que analisar o elemento comum. Despi-lo, aplicar-lhe tantas agulhas quantas sejam necessárias, e ver que tipo de animal ali está. Ir ao básico, através dos efeitos dos fenómenos que (não) se causa, dos feitos que não se logra, comparar com o que pretensamente se faz, e concluir pelo que (não) se é (capaz). De ser, e não de fazer, atenção.

É uma coisa terrível virar uma luz negra internamente, mas a verdade é que ela é capaz de salientar cada grãozinho de pó impuro invisível à luz tradicional. Já muitos teremos visto isso numa discoteca. Mostra os contornos daquilo que nos povoa até invisivelmente, e permite saber o porquê de certas realidades, e talvez dar uma de duas oportunidades. Aliás, três.

- Conseguir passar algo de encanto através de alguma coisa, assim como está, ao longo dos tempos, das pessoas, das realidades, das personificações e acções.

- Aceitar a constância daquilo que pode interessar mas não faz a crucial diferença, porque como se sabe, o diabo está nos pormenores...

- Cauterizar para deixar crescer uma outra pele mais lisa, livre das imperfeições que se pode perder, sem que a pele seja destruída com a limpeza.

 Há alturas em que percebo que a realidade dos factos, aquilo que lá está, que se vê, que não se vê, que fecha portas, que impede a troca sincera seja lá do que for seja com quem for, aparece e fica. É o elefante na sala, a dieta que infelizmente, por mais que se quisesse, está à vista que não resulta, a explicação completamente conveniente e lógica, mas que mesmo assim não explica, o salto que fica a um mísero mas talvez intransponível centímetro do ramo da árvore. É talvez muito difícil, mas talvez não seja dramático. É doloroso, mas talvez não estropie. Gasta, mas talvez não termine. Corta ramos mas talvez deixe a árvore viva. Não há que olhar para o lado. Não há que culpar o cão pelo desaparecimento do trabalho de casa. Talvez toda a gente saiba mesmo o que faz, fez, ou aquilo pelo qual é responsável, ainda que talvez não culpado.

Quando o raio cai demasiadas vezes na mesma circunstância, provavelmente alguém se abrigou debaixo de uma árvore ou abriu um guarda-chuva sem lona. E fê-lo várias vezes. Ou só sabe fazer isso. Ou tem perguntas complicadas a fazer. Perante o discorrer de uma história, esse é o meu primeiro reflexo. As penas oriundas das coisas que não acontecem ou acontecem de forma dolorosa ou negativa é um pouco como deparar com a estimativa do gasto de electricidade. O primeiro instinto é pensar se deixamos a televisão acesa demasiadas vezes, o computador a fazer downloads toda a noite, o frigorífico demasiado intenso quando só há um pacote de leite fora de prazo lá dentro, o aquecedor ligado para criar um ambiente em casa que não pareça algo saído da Marcha dos Pinguins quando chega Dezembro.

E talvez não esteja muito enganado se o culpado estiver mesmo ali ao espelho... quase sempre.


segunda-feira, 18 de junho de 2012

Talvez das melhores capas de sempre, num álbum fantástico, tocado em partes, como esta, num concerto muito, mas muito bom...


terça-feira, 12 de junho de 2012

Há anos lia uma entrevista feita a uma jornalista, que lamentavelmente já não me recordo quem é, e ela dizia que a ideia de que pudesse fazer algo que irritasse ou magoasse, ou algo genericamente fazer algo mal ou de mal a alguém, deixava-a doida. Não porque achasse que era perfeita, mas porque dava voltas e voltas à cabeça à procura da génese para tal réproba. Se a conseguisse identificar, pode ser que estivesse ao seu alcance, caso visse e entendese o mérito contido na tal declaração de demérito. No fundo, havia uma incapacidade para a arrogância ou a confiança sem beliscões, e uma genuína vontade de misturar a evolução com o desejo de tentar pelo menos não fazer mal a ninguém.



Aquele raciocínio era-me tão familiar que durante muitos anos, e mesmo nos dias que correm, tenho de dizê-lo, que intencionalmente me esqueci ou ignorei a parte final ou a conclusão daquela premissa na entrevista. Era um juízo que provavelmente seria acertado, mas não me interessava. O que me interessa(va) era a primeira parte da construção. As buscas pelo porquê e a depuração das lógicas e da mecânica comportamental e relacional até chegar ao âmago e fazer uma de duas coisas. Tentar alterar, ou fazer uma espécie de aceitação sob dor e protesto. Noutras palavras, um tijolo de auto-depreciação, mas assumido como uma marca na pele pela qual não somos exacta ou totalmente responsáveis. Fica uma espécie de desejo de poder ser melhor, e de alguma forma, esperar que essas imperfeições feias não
façam mal a ninguém. Ou façam o pior possível.
Com o passar do tempo, descobri que a assumpção de uma identidade é das coisas mais complicadas que existem. Notícias velhas, como diriam, mas a verdade é que a ingenuidade leva a que se espere que sejamos capazes, pelos nossos elementos construtivos, em parte feitos de nada mais que afecto e boa vontade pura (seja lá o que isso for), ou até mesmo um certo desejo de ordem, de elevar os nossos positivos e de alguma forma colmatar as tais cicatrizes que esperamos conseguir manter "escondidas". Eu sei que sou assim. Tenho fases em que isso não me passa pela cabeça, mas tenho outras em que a espiral quse dá comigo em doido, porque às questões sobre as minhas incapacidades juntam-se outras, e outras e outras, e começo a ensurdecer. E se ensurdeço, não consigo falar, e se não consigo falar lá se vão as minhas capacidades para defender as tais coisas positivas, o meu lado construtivo, aquilo que posso realmente fazer, oferecer, ser capaz.

Mesmo perante pessoas que sabemos que não gostam de nós, ou que gostam mas para quem parece que não temos (a maior parte das) respostas, as perguntas surgem, se bem que no primeiro caso é dirigido para dentro, o segundo caso é holístico.



Bem sei que andam por aí essas ondas de new-age, de auto-ajuda ou o que diabo lhe quiserem chamar, onde as pessoas assumem posturas de "não quero saber" e "quero mais é que te f.... com as tuas opiniões", e "sou fantástico e só tu é que não sabes" e outras pérolas. Mas tenho sérias dúvidas que as perguntas não andem no ar, que não sejam uma espécie de aura persistente, que não levem a que seja por vezes tão complicado assumir algum triunfo quando a miríade de inadequações é tão evidente ou pelo menos aclamada como tal.


É terrível sentir que há pessoas que realmente acham que devemos ter vergonha ou pedir desculpa por algumas coisas que são feitas por respeito à identidade própria, mas também com a consciência de que se quer bem e fazer melhor. É terrível pensar que o exosesqueleto das ideias feitas assenta numa premissa de exclusão ou condescendência, porque pensamentos para além das linhas rectas são afinal apenas danos numa engrenagem que embora muito do politicamente correcto aceite, nos sussurros não passam sem recriminação ou pior ainda, troça.



Na parte final da entrevista, a jornalista disse então que embora tenha levado um bom tempo a percebê-lo, acabou por aceitar que por mais que se esforçasse, alguém iria sempre não gostar, ou não aceitar, por motivos que por vezes não passavam de meras afectações sem argumentação. E que aprendeu a ter uma espécie de código de exigência para que, na maioria das coisas, agisse e fizesse o que fazia sem que automaticamente pudesse considerar que tinha sido gratuito, preguiçoso ou maldoso, pelo menos com intenção.



A razão pela qual a parte final da entrevista só me surge intermitentemente, é auto-explicativa. Por vezes consigo fazê-lo, outras vezes não. Por vezes não aceito as agressões ou criticas que considero injustas, muitas vezes levo-as ao impensável para pensar se não haverá razão nas arguições. E não raras vezes fica o receio de que todo o empenho na defesa de algo que é meu, possa ser apenas uma coisa que não tem sustentação. E ao contrário do que tanto se propala, a idade e a experiência não arredam a insegurança da auto-identificação. Simplesmente tornam-na mais refinada e elegante nas suas manifestações. Aprendemos também a rir-nos delas, quando a depreciação corre o risco de se tornar venenosa para a integralidade do sistema.



A verdade é que eu, e acredito que algumas outras pessoas, andam há muito tempo a pedir desculpa por quem são e outras a fazer justamente o oposto. Há um emparelhamento estranho entre quem não tem muitas respostas e quem não acha que tem qualquer pergunta. Uns de menos, outros demais, e vice-versa, dependendo de que planalto se analisa o carreiro lá em baixo. Mas depois uma pessoa chateia-se. Analisa a forma como pensa e tenciona fazer, sentir ou operacionalizar as coisas e não vê nenhum desejo de fazer mal e enfurece-se. Começa a aceitar aquele brocardo velho no qual se diz que então mais vale ser aquilo que se parece, incrementando a máxima de Sócrates (o grego, ok? nada de confusões). é que se o mal estar, a dúvida e a auto-análise agressiva podem não ser completamente debeláveis, ao menos a culpa vai às urtigas. A boa vontade mantém-se, até se reforça, mas finalmente também mostra os dentes ao negar qualquer necessidade de exculpação.

Temos muita pena, diz-se então.
Temos muito de bom pelo menos para partilhar e não aceitamos a pintura de tanto de mau por quem não sabe desenhar um círculo sequer.

Arrancamo-lo e damo-lo como está.
Há mais mundos e até podem ser tão bons ou melhores.
É por isso estúpido e injusto pedir desculpa pelo desenho de uma órbita de um planeta.
Talvez esteja na hora de desenhar mais um sol na pele...



"He came back one day and
told me stories that I
now dream of
….
open atmosphere 
take me anywhere
take me there.”

Fever Ray - Coconut


sexta-feira, 8 de junho de 2012

É NOSSO, ERGO INTERESSA(????)


A base das loucuras, interesses ou obsessões pessoais raramente interessa a alguém. É difícil fazer esse raciocínio numa lógica onde talvez nos achemos aceites, porque nos lança sempre perguntas complicadas e dificuldades de posicionamento. Aquele tremor fantástico pela vivência das idiossincrasias, aquela busca pelas coisas que nos fazem reencontrar aquilo que talvez seja o mais próximo que temos de uma definição de propósito para uma personalidade é, a mais das vezes, quando falamos das sua profundidades e densidade mais expressivas, anódino. E essa noção chateia (acho eu, a mim entristece-me um pouco) porque encerra não só um elemento de solidão muito claro, como dá aquela imprecisão acerca daquilo que nos identifica como identidade real perante os outros, especialmente aqueles que gostam de nós e de quem gostamos. Ao desconhecer a motivação das idiossincrasias, e já nem vou falar em partilhá-las, desconhecem-se as pedras basilares que depois se ramifica em corredores e corredores do edifício da personalidade. E o mais complicado é que não há grande forma de o explicar, porque requer um movimento empático, ou uma partilha quase involuntária. Quando estamos perante aquilo que nos constrói e faz reencontrar um pouco com o mundo e nos auto-justifica perante ele, o desejo de universalização é em si uma dádiva. “Estou aqui e eu (também) sou isto. Pega e faz o que quiseres, mas consegues ver? Ou consegues ver porquê? Ou queres ver?” Estas são ideias e a verbalização dos pedidos surdos que acredito que muita gente faça, mais ou menos orquestrados em defesas elaboradas da vulnerabilidade, mas que são efectivamente as pistas para pelo menos parte das preciosidades únicas de cada um.


Claro que, e aqui já sei que talvez chateie algumas pessoas, tem de haver algo que se materialize. Estamos a falar de gostos, manias, perspectivas, rituais que têm uma fortíssima explicação genesíaca, e que nos desenham na folha de papel branco onde todos aterramos. Ao longo do tempo vão-se acrescentando as sombras, a ilusão do volume e substância. Alguns dos traços que geram a primeira sombra são repetidos vezes sem conta ao longo da vida, criando uma perspectiva na qual as barreiras subjectivas da solidão que cada um reconhece para si pedem para ser desmontadas, expostas, e sobretudo, enquadradas num acolhimento.


Mas em muitos casos isto é visto como puerilidade. É uma espécie de herança pateta dos dias em que a vida não era supostamente real, mas uma escada de acesso aos dias do necessário, do contundente, do pragmático. Algumas pessoas temem partilhar ou assumir qualquer coisa de original, ou uma busca qualquer que não tenha a ver com conceitos mais ou menos fáceis de explanar numa simples conversa rápida e concisa, porque a recondução ao necessário é feita com aquele ar professoral de quem “sabe o que é a vida”. Claro que depois, muitas vezes, os consultórios psíquicos enchem-se de pessoas que já nem sabem quem são, e que mesmo rodeadas de gente não conseguem partilhar nada de significativo, porque desaparece o que partilhar. Não há massa crítica, as originalidades que fizeram o contorno errático e único da pessoa reorganizam-se numa espécie de complexo de linhas e ângulos rectos, tornando-se, infelizmente, em algo normalizado, com medidas padronizadas.


A verdade é que o conhecimento profundo, ou o mais profundo possível, assenta em dois vectores, que se sucedem. A partilha empática dessas tais irregularidades profundas, e a sorte em reconhecer que essa partilha advém de uma vontade similar e não de um ajustamento quase genérico. Acredito firmemente que a razão maior para que muitas pessoas não consigam dizer que conhecem realmente outras ou pelas quais as amizades a toda a prova raramente se verificam, assenta num desconhecimento por desinteresse. As excentricidades, as unicidades, a mecânica das paixões, o esforço criativo, a originalidade, caem para um plano onde tem de haver uma cedência em meu ver bem maior do que seria desejável, até que seja uma espécie de conferência entre cantões suíços ou o clube do politicamente correcto. A neutralidade passa a ser confundida com respeito, e rapidamente tudo são coisas parecidas com as cimeiras europeias, em que se aflora muito à superfície, mas não se resolve coisa alguma.


No fundo, saber o que é importante e saber gerir essa importância como a fluidez de vontades pelo menos parcialmente partilhadas, é a sorte da empatia. A construção empática permite a partilha de paixões, porque as buscas são similares, ainda que não pelas mesmas coisas. As pessoas que sentem que estão a chegar a qualquer lado relativamente a alguém, são aquelas que sabem e pelo menos em parte conseguem embarcar na viagem de interesse, nem que seja pelo gozo de ver algo novo, de arriscar uma visão de um posicionamento que não tinham. A empatia entre as pessoas nasce do esforço consciente da materialidade, de fazer algo a partir do nada, de mexer o ar quando não há vento, de perguntar se aquela pincelada foi pensada, um o artista estava a sacudir uma mosca e torceu o pulso em cima da tela, se a excentricidade não é senão uma forma de aprofundar as mais apaixonantes e complicadas perguntas sobre algo tão efémero mas tao único como uma vida, uma personalidade e uma história.


É terrível sentir que a viagem idiossincrática é um navio quase despovoado, e é bem pior quando é olhado como uma nau de loucos.  É, em meu ver, a razão para muita da solidão e mudez daquela parte de cada um que sustenta todas as formas de solidão quando elas surgem. É que é preciso não esquecer que lá que nasce tudo quanto torna únicas as histórias muito parecidas, mas que se tornam únicas, pelo simples facto de serem nossas. E o nosso amor não é exactamente o amor dos outros, o nosso afecto não é exactamente  o afecto dos outros, as nossas paixões não são exactamente as paixões dos outros. Mas se não quisermos realmente saber o que significa o “não exactamente”, isso também não interessa nada. E nós acabamos por pouco ou nada interessar, como pouco interessa aquilo que não faz diferença alguma.


E a ser assim, é complicado. E um pouco triste, não é?


Acho eu…

 

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Eu tenho um problema sério(?).
A tristeza, que não a miséria (não há pachorra), tem uma espécie de local reservado no meu cérebro, como uma recorrência forte, ou uma memória persistente. Não é por fazer género, nem por ter qualquer espécie de atractivo, mas com o passar do tempo a coisa parece engrandecer-se, ao mesmo tempo que tento manter algum orgulho em persistir com um sentido de humor resiliente (gosto desta palavra, o que é que querem...?)

Há algo na tomada escura das coisas que tem um apelo para mim, mas como sou completamente alérgico ao niilismo, essa tristeza tem de assentar numa denúncia. De duas espécies de fenómenos. As coisas que não estão bem, e aquelas que não entendo. São angústias de efeito similar, mas umas bem pior que outras. As coisas que "não estão bem", impedem-me de fazer um juízo de relativização, e como tal, choco com elas como uma parede de concreto. E lá está, o que sai partido numa situação dessas, só poderá ser o meu nariz. E com sorte se for só isso.

Só que isso é ainda mais estupido quando começa a afectar aqueles a quem quero e devo proteger e prover. Infelizmente, parece criar uma capa que não o é, mas tão somente uma tentativa trapalhona de protegê-los de um vendaval auto-infligido que embora não pareça, custa muito a conter. Relativizar então é impossível, porque quem conversa comigo nessas alturas sou eu, e as coisas que o gajo me diz não são nada agradáveis para ele.

Ela permite-me deslizar para fora de mim quando essa contenção já não é possível. É a forma mais implacável de acolhimento que conheço. Eficaz como uma dentada com dentes afiados, mas no fundo, embora sangre, nunca infecta. Nem só de água se alimentam os reais crescimentos. Quem navega no sangue vê por dentro.  

Outros sabem mais e outras coisas, seguram um segredo perigoso com as unhas e dentes de quem vê o que eu não consigo. Há uma parca mas sentida insistência  numa contrariedade sincera e afectiva, mas que eu refuto sem saber como, porque nada tenho a apresentar senão a invisibilidade confessada daquilo que eu poderia chamar a minha substância.

A tristeza surge talvez como um depurador do licor tosco dos dias, uma tentativa de posicionar, comparativamente, a salvaguarda das coisas importantes, da denúncia de tudo aquilo que é poluição dita "relativa". Não será justo, nem competente. É talvez uma psicose encerrada em si mesma, mas que demove a violência dos seus efeitos ao comer-se em camadas de pele reptiliana, que se renegera uma e outra vez, mas por vezes mais fraca, mais incapaz de conter o seu próprio circulo interno de pequenos infernos e triunfos.

Não sou uma pessoa triste, nem acho que me possa definir como tal. Não sou uma ave de penas pretas como me definiram, mas talvez sim mais parecido com um sofredor de nanismo com feitio contestatário. Mais na versão Grimm, obviamente. Mas no olhar tendo a desmontar aquilo que é a minha convicção das sombras, e a potenciar aquilo que magoa pela simples percepção da sua existência, para que essa inoculação me vacine, e permita direccionar a energia para a única espécie de crença que tenho. Na bondade de algumas coisas, pelos seus portadores, mas essencialmente pela forma como eles as entendem e traduzem. A felicidade é a facilidade. Do idioma, da tradução, da imediatez da semântica que permite que passemos logo aos gestos.

Tenho um problema sério(?).
A cada dia de paz crescente, surge a solidez da convicção daquilo que não posso mudar, mas que ainda assim tento, e com o qual pinto de azeviche as paredes daquilo que imagino como casa.
Mas para ser justo, ao mesmo tempo fica absolutamente claro aquilo que não é relativizável.
A verdadeira dificuldade está em gerir os dias em que cada uma destas premissas gera o sentimento que lhe é mais caracteristico, com aqueles em que de facto provoca o seu contrário, pela demonstração alternada do que em cada uma delas existe, e o que persiste em ser insubstancial, ainda que imaginado. Parece complicado? Não é. É mesmo terrivelmente simples.  Ser bom ou mau demais para ser verdade, trocando de campo, é a tarefa mais difícil para quem não consegue evitar olhar para debaixo do tapete. O que vale é que no escuro, há por vezes pequenas joias perdidas, que não me ligam nenhuma e brilham assim mesmo, mostrando-me o que não sou capaz de fazer, mas criando-me a vontade de lá chegar.

Talvez eu não tenha um problema sério.
Talvez eu só não queira que as minhas perguntas me levem a ser invisível, quando eu não me admito qualquer holofote. Talvez se eu segurar um pouco no archote, não roube luz a ninguém. talvez se o largar, ainda reste alguma.
Talvez eu não seja triste.
Já pensaram (pensei) nisso?
E talvez eu até o vá dizendo.
Preciso claramente de aprender línguas... Como é que se pede desculpa em Babel?


Diz a vox populi que as surpresas nunca terminam. No que diz respeito a situações que envolvem pessoas capazes de pensamentos e emoções complexas, isso é uma verdade absoluta. Bem sei que há meia dúzia de iluminados que acham que a monitorização do comportamento humano acabou com a capacidade de surpreender desde os gregos, e que tudo é uma espécie de recauchutagem, mas não estou de acordo. Para pessoas brilhantes que conseguem entender uma equação acessível a apenas 70 pessoas no mundo, qualquer reacção humana é obviamente uma coisa pífia e diriam eles, desnecessária. Aliás, se não me falha a memória, um russo, julgo eu, vencedor de um prémio equiparado a Nobel da matemática, recusou o prémio e vivia numa espécie de vida de economia de subsistência, em quase reclusão.

Mas para o mundo mais em geral, as surpresas podem advir de um comportamento já imaginado por alguém, mas idiossincraticamente tornam-se únicos. Nenhuma situação é igual a outra, porque os protagonistas nunca são os mesmos, e as atitudes tem a tendência para se modificaram de forma única, como pregas na roupa que nunca se repetem. Mas há padrões. Definimos comportamentos. As coisas que nos alegram e dão prazer têm consistências. As que nos chateiam também. E no meio de tudo isto, a surpresa surge como uma espécie de amálgama eclética de elementos que constituem uma coisa qualificada como nunca vista. A surpresa, boa ou má, ou só mesmo incrível, surge como uma singularidade. Aliada à constância do elemento surpresa está a pergunta que nos leva a questionar o que fazer com ela. E quando nos referimos ao que fazer com ela, lá surge a qualificação que temos de fazer da mesma. Como é que deixamos que ela nos afecte, nos determine uma visão alternativa sobre um fenómeno, como nos molda, o que passamos a ser e pensar a partir dela. Obviamente que ela pode ser construtiva ou gregária de riqueza, ou destrutiva e denunciadora de falhas retorcidas na fibra do real. A incredulidade é assim um desejo de ordem mínima. Assenta num anseio por expectativas. É uma reacção de pele ao que se encara como uma lógica de passado, de conclusão, de percepção, nem sempre boa, das realidades. E é por isso que por vezes a surpresa não molda nada, não traz transformação, não reavalia as premissas. Consigo, porta apenas a consciência de coisas que nos agradaram ou feriram, relembrando os conceitos mas raramente, ou nunca, as pessoas de onde partiram. No fundo é um prazer ou mágoa diferida, não pelo mensageiro, mas pelo conforto ou medo/repúdio pela universalidade que a mensagem corre o risco de ter. As surpresas nunca terminam porque não sabemos nem bem o que somos, quanto mais antecipar os outros. Mas como disse acima, por vezes trazem a sombra de conceitos, e coisas que, não entendendo completamente, gostaríamos ainda assim que surgissem mais claras se ao menos fossem traduzidas com verdade nos seus opostos. A tempo e de raiz, claro está... Perante males irremediáveis, o resto pouco ou nada interessa. Os crocodilos têm demasiados dentes...


quinta-feira, 31 de maio de 2012

«Desta vez, a Maria João teve sorte. Nunca tinha visto uma médica a chorar. Foi a Maria João que puxou as lágrimas, quando a Dra. Teresa Ferreira lhe disse que não havia mais metástases dentro dela. Ficámos os três a chorar e a olhar para os outros olhos a chorar.

A minha amada já tinha esquecido o futuro. Já não queria saber da casa nova, do tecido para forrar os sofás, do Verão seguinte. Estava convencida que estava cheia de metástases. Doía-lhe o corpo todo. Tinha desanimado. Estava preparada para a morte. Só a morte é mais triste. Tinha-se preparado para ouvir o que já sabia, para não se assustar quando lhe dissessem que o cancro na mama tinha voltado e que se tinha espalhado por toda a parte.

Depois - mas não logo, porque não é de momento para o outro que se desmorre - voltou a ver vida pela frente. Reapareceu um horizonte e um caminho até lá, com passos para dar. "São tão raras as boas notícias", disse a médica, "e é tão bom dá-las, vocês não imaginam". Nós não imaginámos. Começámos a chorar. As lágrimas ajudam muito. As dos outros especialmente. Chorar sozinho não tem o mesmo efeito. A Maria João tem chorado por razões tristes. Desta vez estava a chorar de felicidade.

Como chora cada vez que ouve ou lê palavras doces, a dar força, a partilhar a dor, a juntar-se para que ela saiba que há muita gente a sofrer com ela, tal é a vontade delas que ela não sofra. Ou sofra pouco. Embora isto de se ficar vivo também se estranhe um bocadinho.»


Miguel Esteves Cardoso - 31-05-2012


Este texto andou a circular pela net hoje, e além de ser bonito pela óbvia e honesta emoção dele destila, lança(me) questões muito pertinentes acerca de vários temas.
O primeiro assenta na premissa base de que o medo, a simplicidade terrível das coisas importantes, decisivas, vitais, desmonta a pretensa elegância distante com que por vezes as pessoas se dirigem às coisas. Quando se trata de algo como a eminência de uma perda maior, a filtragem desaparece imediatamente, e as palavras ganham uma espécie de agilidade torrencial, porque é assim que “sai”, como tudo o resto. Quando o medo é gigantesco, a carapaça desencantada com que se destilam assuntos tão tremendos como a morte derrete-se mais depressa que a cera das asas do filho de Dédalo.
No fundo isto também nos deve alertar um pouco. Bem sei que perante estes desmandos injustos e terríveis da natureza, o músculo da relativização sofre umas cãibras valentes. Tudo é afinal único, urgente, o mundo pode de facto acabar e as consequências são bem reais, ao contrário de uma espécie de defesa distante que permite quase encaixar tudo o que acontece, nem que seja numa tomada de consciência do caos em que se pode ficar.
Este texto é tão mais bonito porque nada nele existe senão a vontade de contar coisas que dificilmente, ou jamais, arrisco, poderíamos traduzir de forma adequada quando nos acontece. Porque qualquer arrumação semântica desse conceito assemelha-se a tentar vestir roupas de infante num lutador de sumo. Tudo é ultrapassado, até mesmo o relator. Há uma humanização, que até vi no António Lobo Antunes, quando esteve doente, o qual, não obstante ser um escritor genial, tem uma caganeirice que por vezes agasta um pedaço. Mas com os desmandos da natureza, há não uma descaracterização, mas talvez um ligeiro incremento da generosidade empática, já que na fragilidade de encontra o carácter universal das únicas coisas que talvez nos unam realmente uns aos outros.
O que me leva ao segundo ponto.
Serão estes instantes necessários para a percepção dos laços, ou da robustez dos mesmos? Será que essas percepção não deve ser um trabalho de continuidade, uma espécie de construção. É curioso como grassa a ideia das pessoas que “têm a sua vida”, porque encontraram alguém, porque se entregaram ao seu trabalho, porque descobriram que há magia no colecionismo de caixas antigas de Maizena, e que por isso, há um prolongadíssimo desconto de tempo perante os outros, do qual voltarão se o jogo tiver de voltar a mexer. Curioso e perigoso, como a realidade o tem recentemente demonstrado, em quintais perto dos meus. Há um perigo no pensamento de grupo, se ele for acrítico. Mas se existir a sorte deste ser simultaneamente cúmplice, real e empático, a verdade é que o mesmo em nada obstará à vida “que se tem”.
De um momento para o outro, pode sobrevir a morte, a perda, a dissolução, e a verdade é que embora a amizade não seja um sentimento tão neutro ou pacifico como querem fazer passar, é ainda aquele que permite, ou deveria permitir, uma elasticidade generosa. Mas a elasticidade significa precisamente que a matéria só se esticará até certa altura, finda a qual, sob pena de destruição, terá de voltar ao ponto de origem, num impulso natural e derivado da sua natureza. Como um cordão elástico, as afectividades ditas fraternais aguardar-nos-ão como um cronista paciente à espera de notícias, mas a certa altura poderão dar-nos como mortos. E aí não há protagonista, nem história.
Aos que importam, algumas coisas devem ser ditas. Não se trata de cobrança, mas de esclarecimento. De designação de papéis, de espremer o fruto para saber se é sumo ou cera o que sairá. Não se deve esperar para ver o que acontece quando o cenário é árido e os visitantes raros, a não ser aqueles que sabem, ou gostaríamos que soubesses, como se lá chega.
Hoje estamos bem, e amanhã todo o mundo pode ter levado um piparote. E se somos mais ricos na diversificação complementar, há que perceber que isso só se efectiva materialmente. Só há reacção por força da acção. O pressuposto é o fogo que parece poder arrefecer, mas que num cenário de inferno, só aumenta o incêndio.
Escrevamos uma carta, mandemos um sms, tenhamos uma conversa com mais unhas e dentes, peçam mais esclarecimentos. Mas garantamos e cuidemos também dos nossos que não são as famílias ou Amores. Podem ser poucos, mas que sejam alguns. Porque a certa altura, poderão ser a única mão que se lança, e noutras, são aquilo que nos ajuda a viver ainda melhor o que felizmente possamos ter. E isso faz-se da acção onde a maioria está inerte, e a entrada de peito feito onde a maioria nem sabe que existe uma porta.
Não esperem que aconteça isto que o texto relata, aplicando-o às mais variadas formas de perda. Hoje são uns, amanhã outros. Uns poderão ter sorte, outros não. E se nada disto é controlável, pelo menos o rescaldo ou a vivência poderão ser tão melhores ou piores em função dos que tanto quiseram e souberam ficar, como souberam levar-nos até lá, seja lá onde isso for.

E claro, a melhor das sortes para o MEC e a sua Maria João.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

...

Há certamente quem possa festejar nos próximos tempos, ou não, é sujeito a questões pertinentes, mas para os arautos de um certo e particular tipo de desgraça, este é o dia em que o resultado pode ser ameaçado, mas ainda assim, nunca terão razão, precisamente pelo que persiste, exactamente pela mesma razão que nasceu. E isso não há nada capaz de desvirtuar ou mesmo destruir. Há coisas que, quando sucedem, ultrapassam a nossa capacidade de lhes fazer justiça, tal é a medida do que arrasa, mas o silêncio nunca é opção perante aquilo que queima.

terça-feira, 8 de maio de 2012

Há uma frase do Principezinho, que, como a máxima latina de que John Keating repetiu algumas vezes num filme saudoso, se tornou uma espécie de recorrência conceptual e em alguns casos substitutiva de uma arguição alternativa da mesma ideia por palavras próprias.  Pior ainda eu ser repisada até à exaustão, é a sua, em meu ver, incorrecta aplicação, que radica, em muitos casos, numa tentativa que as pessoas têm de passar a culpa dos seus males de amor para o objecto do seu desejo. Ainda por cima porque se descontextualiza, muitas vezes, o objectivo da frase na própria obra, aproveitando-a para uma espécie de “partiu” pagou, quando o responsável pela destruição das porcelanas é aquele que faz a acusação.
Diz a frase que “Tu tornas-te eternamente responsável por aquilo que cativas.”
E é normalmente aqui que os disparates começam.
Em primeiro lugar ninguém é responsável por cativar outra pessoa, a não ser que esse interesse tenha sido despertado à custa de ilusões e mentiras muito bem colocadas para criar um quadro de intenções que depois não tem qualquer intenção prática. Se as pessoas mentem para criar uma espécie de aplicabilidade empática absoluta com um outro ou outra caramela, então aí sim, há uma responsabilidade, porque as pessoas, sem conhecimento de causa, passaram a perseguir algo que lhes era facultado, mas que na verdade não existia. Mas é um disparate imenso achar-se que alguém é (objectivamente?) responsável pelo facto de outras pessoas a acharem cativante, ou gostarem dela, ou a quererem como objecto de desejo e entrega afectiva, só porque tratam bem outra pessoa, ou até podem mesmo ter outra coisa para oferecer, mas que não corresponde exactamente ao que o “cativado” pretende.
Tirando adolescentes, cujas hormonas andam demasiadamente misturadas com as celulazinhas cinzentas, as pessoas têm de ler as coisas como elas são, e não como gostariam que fosse, ou pior, como acham que cedo ou tarde conseguirão que elas venham a ser. Há uma dissimulação ilegítima quando a pessoa que é cativada acha que ao sê-lo, só o poderia ser com base nos seus objectivos, gostos e preferências, achando que o outro só o fez de acordo com esse arquétipo, e que qualquer desvio significa um engano. Errado! Engano está na preferência pela manutenção da busca pelo objectivo, ignorando a informação que se possui, e chegando a crer para além da vontade do cativante.
Ninguém é responsável por nada que não possa dar, e acho até mesmo aviltante que se possa acusar as pessoas de serem imprudentes quando nada no seu comportamento levou a que as coisas pudessem ser interpretadas de outra forma senão aquela que configura a disponibilidade afectiva e pessoal que de facto têm ou estão dispostas a dar. Quanto muito as pessoas têm, aí sim, o dever de avisar que entre as intenções do cativado e do cativante, há diferenças, e que elas devem ser claras para que algo possa ou não acontecer. Mas depois disso estar bem definido, “all bets are off”, e cada pessoa corre os seus riscos, sabendo desde logo como é que a coisa funciona.
Eu bem sei que é tentador passar a batata quente da culpa e da dor afectiva para alguém, especialmente se esse alguém afinal puder assumir o papel do manipulador/cativador dissimulado e predatório. Ganha-se como que uma espécie de auto-convencimento de autoridade moral, através da qual aquilo que foi oferecido, mas que não podia ser usufruído pelo cativante da forma desejada pelo cativado, surge como injustamente repudiado porque o cativante “deveria ter tido cuidado”. Daí ao bandalho ou à rameira imprestável é um passo, e afinal o cativado não perdeu nada porque a pessoa em causa nem sequer valia a pena e bla bla bla…
Além disto ser um disparate semelhante ao pior da literatura de auto-ajuda, é injusto, e até algo insidioso, porque se baseia num conhecimento que já se tinha, mas que teria de ser necessariamente diferente só porque o cativado assim o desejava. E como me parece claro, as pessoas só darão aquilo que podem dar, e desde que isso esteja esclarecido, o jogo da afectividade, em todas as suas vertentes, é um risco. Depois de avisados, só lá vai quem quer. E sabe ao que vai. Achar que quem simplesmente se limitou a dizer as coisas como eram, e a viver as situações de acordo com isso, é descuidado, é quase como dizer que a reciprocidade é obrigatória, o que granjeia altas posições no ranking da tontice.
Assim como é claro que os cativantes não devem jogar com falsas premissas baseadas em coisas que não pretendem fazer ou não conseguem sentir, os cativados não têm qualquer razão para achar-se devedores de uma qualquer espécie de cuidado acrescido quando sabiam exactamente ao que iam, e o fizeram de livre vontade e ainda por cima com uma agenda bem definida.
Portanto, ninguém é responsável pelo que cativa, desde que o faça com a transparência e generosidade de quem é e do que lhe é possível. Se não forem contadas histórias, as relações, sejam elas de que espécies forem, são possíveis, até mesmo em desequilíbrios afectivos, desde que haja uma assumpção clara do que se passa e as pessoas não construam nada com base em premissas enganosas.
Ninguém é culpado, ainda que possa ser eventualmente responsável, por inspirar um desejo, criar uma afeição, ser a perfeita personagem na melhor das histórias, somente por ser quem é. E há até quem avise bem quais os riscos, uma e outra e outra vez. Desde que saiba isso, o cativado passou a responsabilidade, e eventual culpa da frustração dos seus objectivos, para si. Passar a responsabilidade para quem cativou é uma forma de desresponsabilização que pode parecer prática, mas parece-me quase uma espécie de “calimerização” que dificilmente convence quem olha para as coisas com o mínimo de respeito pelos factos. Acerca disto, recomendo o visionamento do fantástico “500 Dias de Verão” e como, lamentavelmente,  tantas vezes as pessoas vêm para além de si mesmas e do que realmente as coisas são…

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Sabemos que já perdemos a vergonha quando começamos a adiantar teorias quando nem sequer começámos a perceber sobre o que versam...

Embora pensar seja necessário, há um reflexo nas acções que não vai sempre lá buscar tudo. Há sim, uma espécie de empurrão nas costas, um imã que repele ao invés de atrair, o momento da surpresa do desequilíbrio que dura uma eternidade porque a queda não traz a dor que sustém a falta de respiração própria dos inesperados que vão dilacerando.
A ansiedade, aliada a uma inevitável e apagada luz interna, é uma espécie de torniquete da naturalidade, uma imensa força centrífuga que chega a abranda o discurso em dezenas de pequenos e insistentes pedidos surdos.
A confrontação é odiosa, pois mascara-se. É uma parvoíce mas entra e nota-se, incessante, como uma corda persistentemente desafinada numa totalidade que se pretende harmoniosa.
O sol brilha mas não aquece.
O cheiro é inebriante mas é-se incapaz de provar.
Todo me vou "apequenando", o silêncio é uma espécie de mordaça repleta de estiletes afiados e anestésico disfarçado de leituras profundas. Serve mas não resolve. Pára, mas não regenera.
É ao sacudir-me de mim que percebo o meu próprio peso. É mais imenso que inútil, mas é claramente um retorno a instantes onde nada se parecia com o que devia ser. E assim escondo-me para ver se ao não me ver, há quem siga como sempre, ou quem desafie.
É uma espécie idiota de pedido, uma patetice encriptada, e no entanto tão inevitável como o decoro que preciso de me ter para ainda me respeitar.
Mas digo. Vou dizendo.
Já deixei de o fazer demasiadas vezes.
Já muitos fizeram o mesmo.
E os resultados estão à vista.


quarta-feira, 11 de abril de 2012


ESTAÇÃO ALTERNATIVA V
Quando existem detalhes que não conseguimos enquadrar, ou colocar minimamente em palavras, deixamos a outros que o saibam fazer, tecendo assim uma hipótese de contorno, como um cumprimento que vai muito para além de nós, porque somos tão mais pequenos.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

ESTAÇÃO ALTERNATIVA IV

Estival, mas não silly....

ESTACÃO ALTERNATIVA - III
"Existem pessoas capazes da mais rasteira malícia por propósitos que me escapam. Pessoas que usam cada grama de uma hipocrisia imensa para fazer desfilar uma série de (julgam eles) pequenos actos que deixam os destinatários sem reacção. Existem pessoas capazes de justificar, por uma soberba idiota e um senso de cobardia insustentável, cada atitude em detrimento de algo que não seja o próprio. Justificam-se por uma pretensa superioridade que tem como suporte apenas uma espécie de poder artificial, onde concorrem apenas as relações hierárquicas de sobrevivência ou a ameaça de violência. Justificam-se pela ilegitimidade de quem simplesmente acha que se for feito por si, está justificado, e ponto final.


A maldade, que a mim sempre me apareceu vestida como um egoísmo absurdamente potenciado, é real, e há quem o faça sem qualquer condicionamento, razão, ou justificação. Como a estupidez, parece justificar-se a si mesma na cegueira própria dos doidos que se corrompem a si mesmos à custa daquilo que espoliam a outrem.


Algumas pessoas simplesmente tiram sem autorização, concluem sem argumentos, usam sem cuidado, e destroem sem ser como consequência de uma ameaça."





ESTAÇÃO ALTERNATIVA II


A bondade dos gestos simples e/ou bons está auto-demonstrada. Não pela batidíssima metáfora da virtude ser a sua própria recompensa, mas porque ao comprovar-se a resistência que permite um impulso positivo, denuncia-se todo o mundo que, nesse instante, se calhar não interessa mesmo nada.

ESTAÇÃO ALTERNATIVA - I

Turn the world off for 3 mns...


quarta-feira, 4 de abril de 2012

Eu desconfio dos histriónicos. Dos alardes, dos foguetes, das auto-promoções, da sede de holofote, da pretensa unanimidade da "porreirice". Desconfio daqueles que confundem sinceridade com auto-centrismo, das esponjas ao sol, que muito absorvem mas nada devolvem. Desconfio daqueles que têm "tantos amigos", são "tão populares", mas no limite, perdem-se nos seus ecos quando o brilho exterior enfraquece. Daqueles que, na merda, chafurdam quase sempre sozinhos...
Desconfio dos que choram a ausência alheia e enfeitam a própria a cores de desculpa. Do carácter unilateral dos gestos cheios de auto-intuitos. De quem nada faz sem o bloco de uma conta corrente desequilibrada. De quem jamais se questiona enquanto pergunta os motivos de todos a todos.
Desconfio dos sorrisos de quem diz nunca mentir, de quem apresenta imobilidade de ser com o passar do tempo, de quem não muda de opinião, de quem a serve consoante o destinatário, só para não perturbar a paz.
Desconfio de quem desculpa a inadmissibilidade do desconforto com a emoção necessária. De quem não cerra o dentes e confunde topete com sinceridade.
De quem perdeu o juízo com os outros, não sabendo que a piada só está na metáfora de alguma auto-loucura interna.
Desconfio de quem não tem a noção.
Nem de si, e por isso, nunca dos outros.


Talvez seja de facto necessário sermos capazes de equilibrar a nossa bicicleta, apurar a nossa dicção, suster o equilíbio emocional de todos os dias, das ocasiões em que o cerco parece fechar-se...
Mas as verdades também surgem assim, desta forma simples, belíssima, triste e verdadeira.
Não há como ladear o impacto do cinismo no estado corrente de coisas. Mas aquele é uma denúncia.
E como tal, faz questões sobre alternativas comportamentais, ou do estado de coisas.
Assim, os que tudo pediram, mas chegada a sua vez, pouco ou nada fazem, assumem apenas aquilo que era tristemente esperado, mas não se torna melhor por isso.
Há quem só saiba pedir.
Lixando as hipóteses os que deveriam e precisam de fazê-lo, mas preferem o silêncio doce próprio das surpresas da iniciativa, e do cuidado para além da educação.

Que triste maravilha esta faixa. Belíssima. :)

"I wish that I'd arrived a little sooner -
You really should have called we'd have come here right away
You tried to help yourself but you got it wrong

You've thrown yourself
Into the flames 'cause you're covered in cold
But these are your friends
They give out a nice warm glow

You've tried so hard to see for yourself
Your perspective is wrong
These are your friends
Let them come guide you on

Listen now - now's the time to listen
There're lessons to be learned
I've seen this before in my own life
You feel covered up, removed from the world around you
With all your senses dulled you'd do anything to feel
You tried to help yourself, but you got it wrong

You've thrown yourself
Into the flames 'cause you're covered in cold
But these are your friends
They give out a nice warm glow

What have you done? You're cutting your cord
You're floating in space
But these are your friends
They'll be your star-map home

Everybody needs some help sometimes..."





segunda-feira, 26 de março de 2012

Do Agnosticismo Pró-Ateísmo Agressivo
(Porque sou mais Dawkins ou Hitchens)

A propósito deste vídeo sugerido por um grande amigo, com quem já tive determinadas trocas de ideias acerca do tema, surge-me dizer algumas coisas.
A ideia de Botton é boa. Mais do que boa, assenta numa lógica de concórdia à qual não posso deixar de ser sensível, porque, de facto, há pontos de vista que assentam perfeitamente em parte da minha visão dessas realidades. A ideia dos cântigos de Natal e fenómenos que tais, para um agnóstico empedernido como eu, merece debate interno. E apesar de ser um duvidador metódico com um desgosto profundo pelas dogmáticas religiosas, existem determinados valores, talvez os puramente gregários, que nãome são estranhos. E sim, tenho uma visão ou experiência de transcendência quando olho para coisas inacreditáveis que a natureza faz, como o ornitorrinco, o diabo marinho ou os pinguins da Antártida, e, claro está, na capacidade que as pessoas têm de gostar umas das outras e o desejo materializável de criação.
Mas então porque é que sou mais chegado à noção trauliteira do agnosticismo/ateísmo? Por razões que em nada colocam grande parte das palavras de Botton em causa, mas que nalguns aspectos são divergente.

Primeiro, porque as próprias religiões organizadas são tudo menos gregárias. São clubes, com regras dogmáticas muito claras e que dispensam paternalismo e desdém por divergências claras com as suas interpretações metaforico-dogmáticas. Desde a orientação sexual à aceitação de credos e formatos alheios de vivência transcedental, a verdade é que as religiões maioritárias são, em tudo, sectárias. E os desgraçados que tentam de alguma forma um ecumenismo mais abrangente são barrados pela ala dura, por exemplo, do Vaticano ou de um Islão mais musculado, e infelizmente, a regressar em força.
No fundo, a religião é a base para estas deformações dogmáticas, e as suas, em meu ver, terríveis consequencias, e como tal, como Hitchens e Dawkins, se juntarmos isto a uma denegação teimosa da necessidade de uma realidade factual, o caldinho está todo entornado. A religião surge-me como uma espécie de exteriorização daquilo que deverá partir como impulso interno de valores humanos, gregários, e sim, até morais, embora este conceito deva ser manejado com o maior cuidado possível. É terreno fluido aquele que determina como e a quem devemos amar, e a religião nisso é magistral na dogmática sectária, seja pela misoginia milenar, pela homofobia, e depois pela risível tolerância da poligamia mormon, por exemplo.

Segundo, porque trazendo o discurso humanista mas racional e esclarecido para o debate surge apenas uma coisa possível - a pergunta. Como será, será que há algo, etc, etc, como produto de um juízo racional que, nem por isso deixar de ser humano ou sensível. E a dogmática dominante impede esse discurso, essa abertura a perguntas respondidas apenas com propostas de resposta, e não com cartilhas de repetição, como se a verdade fosse possível, e ainda por cima, incutida à marretada.

E terceiro, porque Botton fala na única coisa com a qual discordo frontalmente, e chega a ser-me ofensiva - o agnosticismo e o ateísmo não são religiões, nem formatos destas. É uma atitude gnoseológica, de dúvida metódica, de respeito e humildade pela natureza finita da nossa capacidade de conhecer, e que, no meu ramo, enfatiza as capacidades humanas para sentir, desejar, amar e sobretudo, criar. Interno, quase inatista, se bem que sujeito a processo educacional, claro, e não oriundo de dogmáticas que podem ser entendidas como instruções a seguir, e não vontades internas que se exteriorizam por força de um sistema de valores forte o suficiente para gerar uma conduta.

No fundo, não coloco em causa muito daquilo que ele diz, especialmente na ideia de que as posições se podem concertar, que as pontes são possíveis, e atenção, eu até acho muita piada a liturgia e mitos religiosos, porque na maior parte das vezes são histórias excelentes. Mas tenho muito pouco respeito por organizações baseadas em lógicas paternalistas, que se consideram mais próximas da verdade que as bruxas wiccan ou um dos meus "idolos" - Alan Moore - que adora a cobra Glychon e se apresenta como "mago". Porque é a subversão do raciocínio inclusivo que a religião deveria ter, mas cuja dogmática impede por definição, ao classificar de formas muito estreitas, o maniqueismo próprio de visão de pouco mundo.

Eu não sou parte do Ateísmo 2.0.
Sou um simples agnóstico que gosta de ouvir histórias, que se perguntar milhares de vezes acerca da natureza das coisas, que até acha que pode haver uma transcendência, mas que crê piamente que a maior das magias está na capacidade intrinseca de sermos bons, capazes de criar, e sensíveis a uma experiência talvez até espiritual, mas que, em meu ver, jamais poderá por o pensamento humano de lado.

Botton era o tipo que propôs construir um templo do ateísmo em plena Londres, o que por tudo o que disse acima, é uma subversão do meu entendimento. Mas, isso não quer dizer que não ache estas ideias boas, e que até não incorpore muitas delas no meu código de comportamento.
Simplesmente há algo nas histórias fantasiosas que me incomoda quando as querem impor como verdade e não como a única coisa que são - uma hipótese. Quanto muito, uma boa e criativa série de perguntas.

Mas gosto das ideias de Botton, e até concordo com ele mais do que pode aparentar.